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Primeiro Domingo da Quaresma

QUARESMA UM TEMPO DE INTERPRETAÇÃO.
Querido irmão e querida irmã internauta, na quarta-feira passada, a Igreja convidou todos os seus filhos a entrar no mistério da quaresma. Hoje ela nos diz que a Quaresma é para nós um tempo de graça, um tempo especial, pois Deus se coloca do lado de nossa vida concreta. As tentações de Cristo são as tentações diárias de nossa vida. O nosso cotidiano também é marcado por angustias e aflições; a diferença está no valor que damos às coisas que nos sucedem no dia-a-dia. Por isso a quaresma também é tempo de retiro de toda a Igreja, somos convidados ao deserto.

Por se tratar de um tempo especial precisamos nos munir da força de Deus, esta força nós a encontramos na sua Palavra. Porém, não basta simplesmente abrir a Bíblia, é necessário a presença do Espírito Santo, deixar que ele fale ao nosso coração, e isto exige então de nós o esforço interior de abertura, de docilidade, de disponibilidade para que a Palavra de Deus seja a força atuante de Deus em nós. E é justamente isto que as leituras nos põem atentos no dia de hoje.
Podemos nos perguntar então: o que devemos fazer para tornar este tempo favorável? A primeira coisa é compreender a Quaresma como um caminho, uma realidade dinâmica, um grande retiro, “que alarga o nosso horizonte e nos orienta em direção à vida eterna” (Papa Bento XVI – quarta-feira de cinzas); isto nos sugere que podemos vencer a imagem antiga que caracterizava a quaresma como tempo de tristeza e de uma fria penitência, isto é anti-produtivo, causa melancolia e acaba mais atrapalhando que ajudando. Então podemos tomar uma via alternativa, como aponta o papa Bento XVI quando, na quarta feira de cinzas, dizia: “o caminho da quaresma nos conduzirá à alegria da Páscoa do Senhor” Neste sentido, já se aponta a quaresma como um tempo especial porque é um caminho de alegria pascal, e o Papa continua: “renovamos o nosso compromisso de seguir Jesus, de nos deixarmos transformar pelo seu mistério pascal para vencer o mal e fazer o bem, para morrer para o nosso «homem velho» ligado ao pecado e fazer nascer o «homem novo» transformado pela graça de Deus”. Veja que lindo; a quaresma é um processo de transformação interior, de uma profunda auto-descoberta, que nos conduz a uma auto-libertação.
Diante disso, olhemos para o evangelho de hoje: “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do rio Jordão e, no Espírito, era conduzido pelo deserto”. Trata-se de um processo de revelação ao Filho de Deus em sua humanidade. Para Lucas, a vida de Jesus é uma vida plenamente normal e humana, pois “Ele crescia em estatura, conhecimento e graça diante de Deus e dos homens”, isto pressupõe a plena humanidade de nosso Deus, sujeito ao tempo, às dificuldades humanas, ao cansaço e por isso também à tentação. Então vem-nos rapidamente a pergunta: “O que é a tentação?”. Várias são as definições de tentação. Fiquemos com uma mais existencial e presente no evangelho de hoje: o evangelho nos mostra a tentação como a tentativa perversa de inverter a realidade, Jesus é posto diante das Escrituras, algo sagrado para um judeu e também para nós cristãos. O centro da tentação não está na bíblia enquanto tal, mas na interpretação que dela podemos ter. O diabo sabe bem disto, ele conhece as Escrituras em sua totalidade, mas quer fornecer uma interpretação errada, que desvirtue a verdade presente ali. E ele mexe no interior das coisas, conhece desde o início as fraquezas dos homens, o seu lado sombra, e investe nisto que parece a coisa mais sagrada.
Vejamos atentamente: A Quaresma é, portanto, um tempo de interpretação. Interpretar é dar sentido às coisas, ou encontrar sentido nelas, somos seres de interpretação, o problema é que interpretação damos às coisas. Se nos colocarmos agora ao lado de Jesus podemos com ele entender tudo a partir da realidade mais concreta da tentação: só há tentação onde há liberdade, e portanto consciência. Como cristãos recebemos a consciência do batismo, fomos mergulhados no mistério do Deus amor e misericórdia, passamos da lógica do mundo velho, feita de competição e rivalidade, de mentiras e conveniências, para uma lógica de solidariedade, de bondade, de doação que nasce de nossa conformação a Cristo, do pensar e do viver dele; é por isso que a partir dele e nele podemos entender o mistério do mal que nos rodeia e que às vezes nos habita, e uma vez identificado este mistério que aponta o negativo do ser humano, podemos vencer o tentador, para encontrar a verdadeira dignidade e a verdadeira felicidade para nós mesmos e para os outros.
No evangelho vemos Jesus que resiste ao tentador e o vence. Este começa com uma tentação bastante sutil, dizendo a Jesus: “Se és o Filho de Deus, manda que esta pedra se transforme em pão”. Veja a inteligência do mal. Ele reconhece a verdade de Jesus: Ele é Filho de Deus. No batismo Jesus foi declarado ser ele o Filho amado de Deus, o eleito. Enquanto Filho de Deus ele tem poder de fazer milagres, de realizar curas. Mas eis a raiz da tentação. O diabo pede que ele realize prodígios e milagres em beneficio próprio, para a própria vantagem. Aqui está a tentação. Na realidade, o poder de fazer milagres, enquanto Filho de Deus, Jesus o possui para o serviço de Deus e dos irmãos, e não para satisfazer os próprios desejos.
Isto ocorre conosco. Nós também temos dons preciosos, fomos prendados com talentos divinos, a inteligência, a bondade, a coragem, a disponibilidade, o dom de servir, de dar conselhos, de consolar… dons que podem trazer muitas vantagens, porém quando os realizamos para o nosso proveito, alimentamos assim o nosso egoísmo e deixamos de corresponder ao plano de Deus, então a nossa vida torna-se estéril, porque não tomamos a justa direção das coisas.
Mas Jesus vence esta tentação e responde: “Está escrito: ‘Não se vive somente de pão”. Com estas palavras de Jesus podemos acrescentar aqui aquelas de Bento XVI que nos ilumina para vermos o que foi iluminado por Jesus: “Jesus nos faz compreender a relatividade dos bens desta terra e assim nos torna capazes de renúncias necessárias, que nos tornam livres para fazer o bem” (Papa Bento XVI). Isto nos alerta para a provisoriedade deste mundo, não podemos absolutizar nada, basta-nos Deus, Ele é o como nosso amparo e proteção, sustento e felicidade, do contrário somos vítimas de um mundo de escravidão e de dependências, que só gera pessoas frustradas e interesseiras, vazias daquele dom tão precioso que é a gratuidade do viver e humildade do agradecer: “de graça recebeste de graça deveis dar”, pois a gratidão de quem sabe que tudo é dom se transforma em gratuidade de quem sabe que “há mais alegria em dar do que receber”. Eis o sentido que Jesus nos ensina para vencermos a primeira tentação, vivermos unidos à Palavra de Deus, pois as palavras que saem da boca de Deus são palavras que exprimem o desígnio de Deus, que é o plano de amor do Pai celeste por cada um de nós, o seu carinho, a sua bondade, e sobretudo a sua ternura pelos pequeninos que dele depende e que a ele se recorrem: “Lembra-te que eras arameu errante” – dizia a primeira leitura deste domingo, assim Deus recordava Israel, assim Deus nos recorda com carinho, para que não vivamos uma vida de ilusão e mentira, fadada a plena desilusão e fracasso. Nós então podemos viver bem se vivermos na docilidade a vontade do amor de Deus.
Mas o diabo é vil e mais sutil do que podemos imaginar. Ele propõe a Jesus uma segunda tentação, agora mais explicita e mais forte, e que se relaciona com a própria missão de Jesus. Jesus veio para ser rei, ele é o Messias de Deus, e por isso deverá ter o mundo inteiro submetido ao seu senhorio. Lucas relata que na Visita do Anjo Gabriel à Maria, Deus havia dado a certeza de que Jesus assumiria o reino de Davi, que sentaria no trono da realeza, teria nas mãos o bastão de ouro da casa de Jacó, e com cetro de ferro iria conduzir o povo de Deus até as promessas, e que por fim teria um reino sem fim. São Paulo fala que ele é o Senhor, ao qual todo joelho deve se dobrar no céu, na terra e nos abismos. Mas o que vimos, o que Nossa Senhora viu? Um filho humilhado, um trono indecoroso – a cruz –, uma coroa, sim, mas de espinhos, um bastão, porém, de dor – a lança que lhe cravou o coração. Como entender tudo isto? Eis a raiz da segunda tentação. O diabo propõe a Jesus um meio simples para chegar a este fim honesto e bom – ser rei de Israel, o rei esperado, o rei justo. Ele mostra a Jesus todos os reinos do mundo e suas glórias, e lhe diz: “Eu te darei todo este poder e a riqueza destes reinos, pois a mim é que foram dados, e eu os posso dar a quem eu quiser. Portanto, se te prostrares diante de mim, tudo será teu”.
A esta tentação Jesus responde com uma força e uma decisão ainda maior: “Está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus e só a ele prestarás culto”. Assim Jesus desmascara o diabo. Este propõe meios maus para alcançar um fim que de per si é bom. Trata-se do princípio maquiavélico de que os fins justificam os meios. Este princípio nos vem proposto muitas vezes na vida, mas o seu fim é perverso e pervertido, pois distorce a realidade, falsifica um bem elevado e nobre, pois a pessoa que usa tais meios se estraga e se perverte em suas raízes de bem, corrompendo a própria dignidade e pondo a destruir a própria felicidade.
Por fim, vem a última tentação. O diabo percebe que Jesus cita as Escrituras, e entra no mundo interior de Jesus, é o veneno do mal, a tentação de perverter o nosso coração, a nossa confiança em Deus. O diabo tenta Jesus propondo uma ação que parece expressão de confiança em Deus: “O diabo levou Jesus a Jerusalém e, colocando-o no ponto mais alto do templo, disse-lhe: “Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo. 10 Pois está escrito: ‘Ele dará ordens aos seus anjos a teu respeito para que te guardem’, 11 e ainda: ‘Eles te carregarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’”.
Mas Jesus descobre e denuncia tal tentação: “Também foi dito: Não porás à prova o Senhor, teu Deus”. Na verdade, agir como sugere o diabo seria como tentar a Deus, isto é, forçá-lo a realizar um milagre. O que significa pô-lo a nosso serviço, enquanto que na verdade somos nós que devemos estar a seu serviço. Eis aqui a graça que Jesus nos oferece para desmascarar a mentira da tentação, perceber se as nossas ações correspondem ou não ao amor de ternura e bondade de nosso Deus, que quer nos dar vida em plenitude e assim nos conduzir a uma vida de fraternidade e solidariedade; ou se as nossas ações nos levam a um desejo de ambição desenfreada e egoísta que quer a todo custo pôr-se em evidência, custe o que custar. Assim elevamos o nosso ser, ancorando e justificando os nosso atos perversos em nome de Deus e com a Palavra de Deus, por muito se tentou justificar as guerras santas, a pena de morte, o triste período da inquisição e tantas outras coisas em nome de Deus, mas tudo isto não corresponde ao projeto de Deus.
Tudo isso nos leva a concluir que a Quaresma é um tempo necessário em nossa vida, um tempo especial de encontro consigo mesmo, onde podemos interpretar o projeto de Deus em nossa vida com a busca sincera e autêntica de um homem e uma mulher renovados pelos dons verdadeiros e sadios de nosso Deus postos à nossa disposição. Assim podemos meditar a longo de toda a Quaresma as tentações de Jesus, para nos reforçamos interiormente e assim conduzir-nos nesta luta diária contra o mal, que se disfarça na sutileza de propostas que acabam por nos afastar do projeto de Deus. Então se rezarmos poderemos ter a atitude generosa e eficaz de viver bem o dom de Deus em nossa vida.

 

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