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Quaresma tempo de Transfiguração

SEGUNDO DOMINGO DA QUARESMA
Fl 3,17-4,1 3,17; Gn 15,5-12.17-18; Lc 9,28b-36
1 Neste tempo especial de quaresma, tempo de graça, tempo de conversão, a Igreja nos propõe no evangelho de hoje um caminho espiritual que nos conduz à montanha, lugar da revelação de Deus, de sua auto-manifestação. Trata-se da experiência da auto-revelação de Deus em Jesus Cristo. Os antigos chamavam Jesus de “o Verbo abreviado de Deus”, palavra sintética do Pai, Palavra que tudo contém, da qual tudo existe e para qual tudo retorna.

Esta é a experiência mais desejada por todos os homens, ver a Deus, tocar o seu manto, sentir sua presença. Este é o centro do evangelho de hoje e também das leituras.
Na primeira leitura de hoje vimos que o nosso pai na fé, o grande Abraão, ainda estava vivendo o início da experiência de descoberta do seu Deus, ele, como os grandes homens da bíblia, ao deixar a sua terra, seu povo, sua família, suas seguranças humanas, rompe com o laço do politeísmo para se aventurar na busca do Deus único, o Deus que fala. Por causa dessa experiência, Abrão deixa de ser um simples caldeu e se torna Abraão – pai de muitos filhos. Alguns homens da bíblia como também Paulo e Pedro, tiveram o seu nome trocado como símbolo da experiência única do Deus santo de Israel.
Esta experiência foi amadurecendo na história do povo eleito. Deus precisava criar uma forma de se auto-revelar ao seu povo, de uma maneira que não agredisse, não ferisse e nem muito menos violentasse a realidade da criatura ou que afogasse nossas experiências humanas na total dissolução do nosso ser. Mas não foi assim, um plano bondoso e eterno, repleto de carinho fez com que Deus encontrasse um meio mais humano, sobrepondo-se assim a todos os nossos planos que muitas vezes são repletos de desumanidade e se tornam até mesmo anti-humano, negando ao homem seu próprio ser homem. Sabemos que Deus tinha infinitas possibilidades, mas aquela que ele escolheu foi a de se tornar igual a nós em tudo. Somente assim Deus podia falar de si mesmo a nós, falar-nos com palavras humanas, com gestos carregados de humanidade, de ternura e de bondade e assim: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós”.
Agora era possível a transfiguração da humanidade, a manifestação da transparência de Deus na realidade de nossa carne, de nossa história. É isto que o evangelho de hoje nos apresenta. A abertura do céu, a voz do Pai, símbolo da nova situação da humanidade diante de Deus, que Paulo chama de “nova criatura”.
Estamos, portanto, diante de um mistério luminoso e confortante: “Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar. Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante”. O evangelista anota um fato surpreendente: “Eis que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias. Eles apareceram revestidos de glória e conversavam sobre a morte, que Jesus iria sofrer em Jerusalém”.
Podemos então dizer que a transfiguração é a revelação da pessoa de Jesus, porque logo depois aparece uma nuvem luminosa, que anuncia a presença de Deus, e uma voz que diz: ““Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!”.
Com este evento os discípulos estavam sendo preparados para o mistério pascal de Jesus. Estavam sendo preparados para enfrentar a terrível prova da paixão e eram preparados para interpretar de forma correta o mistério da ressurreição. Pois uma má interpretação da Cruz pode conduzir-nos também a uma desvirtuação de nossa própria humanidade, foi isto que São Paulo quis nos alertar quando dizia: “há muitos por aí que se comportam como inimigos da cruz de Cristo. O fim deles é a perdição, o deus deles é o estômago, a glória deles está no que é vergonhoso e só pensam nas coisas terrenas. Nós, porém, somos cidadãos do céu”.
Veja só. Em Cristo se abriu a nós novas possibilidades para vivermos bem neste mundo, não somos mais prisioneiros do egoísmo, nem da violência, nossa lógica é outra, nosso fim é sublime, Paulo traduz isto dizendo que somos “cidadãos do céu”. Na bíblia, esta imagem foi revelada como sendo a imagem de Deus em nós, de modo que ao nos aproximarmos de Deus que se aproximou de nós, vamo-nos tornando semelhantes a ele. É a dinâmica da fé, pois quanto mais próximos de Deus estamos, mais humanos nos tornamos. Transfigura-se a nossa realidade com a presença de Deus. Vemo-nos sob a luz de Deus: “pois em vossa luz contemplamos a Luz”. Vemo-nos como de fato somos, “pois nele vivemos, somos e existimos”. Mas isto não é um fato alienante, nem muito menos feito fora da real condição humana, para que seja verdadeiro e autêntico deve ocorrer em nossa vida, em nossa história.
Assim o mistério da transfiguração de Jesus é, na verdade, a revelação de nossa humanidade neste plano bondoso de salvação. No qual Deus ao vir ao mundo vem a nós revestidos de nós mesmos, vem a nós com nossos gestos, com nossas mãos, com nosso olhar, e com este olhar nos olha, pede a nossa atenção, pede que o escutemos, pois somente com a voz de Cristo encontramos sentido verdadeiro para a nossa vida.
Não se trata mais de uma revelação vinda de fora. “Por isto, o homem pode acolher a palavra de Deus não como uma verdade a ele estrangeira, contraposta, heterônoma, mas como a verdade mais própria, mais íntima, não obstante ao fato de que esta jazia escondida no mais íntimo (dele e de Deus) de tal forma que eu não podia descobri-lo por mim mesmo. E todavia o Deus que fala em mim é algo muito maior que o «meu eu melhor». Por isto que esta palavra não é estranha aos meus ouvidos, ao contrário, ela é a coisa mais própria, mais íntima e mais próxima, ela é a minha verdade, a verdade sobre mim, uma vez que ela é a palavra que me desvela e me doa a mim mesmo”.  
Neste sentido, a Palavra de Deus que se volta para nós neste dia da transfiguração de Jesus pressupõe sempre uma Palavra de Deus em nós “O homem é o ser que tem no coração um mistério maior do que ele mesmo. É construído como um tabernáculo entorno a um sagrado mistério. Quando a palavra de Deus deseja habitar nele, ele não deve ir em busca do próprio centro. Pois, a sua mesma máxima intimidade é disposição, escuta, percepção, vontade a dar-se e confiar-se a isto que é maior do que ele e a fazer valer a verdade que é mais profunda do que ele”.  
Estas palavras de von Balthasar nos ajudam a compreender a pedagogia com que Deus foi nos conduzindo até chegarmos ao tempo da plenitude, tempo em que Deus falou-nos de uma vez para sempre em seu Filho único, Jesus Cristo, Verbo feito carne, sem nos agredir, sem nos violentar, mas numa relação que nos ajudou a encontrarmo-nos n’Ele e Ele em nós. Este pode ser um caminho de Quaresma meditar a presença de Deus em nós, e deixar-nos transformar por dentro, nos assemelhar a ele, com gestos totalmente humano, pois Deus é plenamente Deus onde o homem é plenamente homem.
Quantas coisas podemos nos questionar nesta Quaresma sobre nossas atitudes de violência, de agressão, de egoísmo. Quantas pessoas ao nosso redor, em nossos bairros, nas periferias de nossa cidade vivem sem o mínimo da dignidade humana, e nós nos fechamos em nosso egoísmo, em nossa comodidade e indiferença. Descobrir que Deus se transfigura em nós é começar a ter em nós os mesmos sentimentos e pensamentos d’Ele, capaz de criarmos um mundo de solidariedade, de fraternidade, uma cultura da vida, onde muitos não a tem pela perca da dignidade, da falta de alimento, da falta de um teto, da falta de saúde. Só seremos capazes de descobrir Deus em nós quando formos capazes de gestos verdadeiramente humanos, transfigurados pela presença de nosso Deus.

  H.U.VON BALTHASAR, Preguiera contemplativa In: Nella Preguiera di Dio, v. XXVIII, Milano, Jaca Book, 17-23. 
  H.U.VON BALTHASAR, Preguiera contemplativa In: Nella Preguiera di Dio, v. XXVIII, Milano, Jaca Book, 17-23.

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