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Eucaristia: Um mistério de amor

O Concílio Vaticano II reformulou o conceito de Eucaristia como sendo a fonte e o ápice da vida cristã. Uma expressão muito rica de significados. Devolvendo à Eucaristia seu valor dinâmico e cósmico. Podemos dizer que dela tudo nos vem e e nela tudo ganha consistência.

EUCARISTIA: UM MISTÉRIO DE AMOR

“Irmãos, sede aquilo que vede, recebei aquilo que sois”                             
Santo Agostinho

O Concílio Vaticano II reformulou o conceito de Eucaristia como sendo a fonte e o ápice da vida cristã. Uma expressão muito rica de significados. Devolvendo à Eucaristia seu valor dinâmico e cósmico. Podemos dizer que dela tudo nos vem e e nela tudo ganha consistência. É o canto do livro do Apocalipse, pois a Eucaristia é a própria presença consumada e resumida de todo o mistério cristão. Dom supremo que alimentou e continua a alimentar tantas vidas e a vida de tantos santos, sobretudo os mais ativos em nosso tempo e também nos tempos passados. Com esta reformulação do Concílio Vaticano II podemos até dizer que toda a vida cristã, quando vivida em autenticidade e plenitude é ela profundamente eucarística, pois, como bem nos lembrou o papa João Paulo II, “a Igreja vive na eucaristia e através da Eucaristia”. A eucaristia é o conteúdo máximo da Igreja, seu centro fundamental. Mas podemos até ampliar este conceito, a partir de uma noção mais profunda da revelação e dizer que todo o cosmo, todo o universo é, por pura graça, um dom eucarístico do Pai. Tudo dele veio, tudo a ele retorna como um cântico espiritual. Tudo nele ganha consistência. E este laço de amor trinitário se mostrou visível na vida do Filho amado de Deus, a Verdadeira e Única Eucaristia do Pai.
Por isso o mundo todo se torna a grande eucaristia de Deus Pai. Este foi o sentido que o padre francês Teilhard de Chardin  tentou refletir em seu livro La Liturgie cosmique:

Oremos:
Ó Cristo Jesus, vós trazeis verdadeiramente em vossa benignidade e em vossa Humanidade toda a implacável grandeza do Mundo. E é por isso, por essa inefável síntese realizada em Vós, pelo fato de que a nossa experiência e o nosso pensamento jamais teriam ousado reunir para os adorar; o Elemento e a Totalidade, a Unidade e a Multiplicidade, o Espírito e a Matéria, o Infinito e o Pessoal, – é pelos contornos indefiníveis que essa complexidade dá à vossa Figura e à vossa Ação, que o meu coração, tomado pelas realidades cósmicas, se entrega apaixonadamente a Vós! Eu vos amo, Jesus, pela Multidão que se abriga em Vós, e que ouvimos com todos os outros seres murmurar, orar, chorar, quando nos estreitamos contra Vós. Eu vos amo pela transcendente e inexorável fixidez de vossos desígnios, pela qual a vossa doce amizade se matiza de inflexível determinismo e nos envolve implacavelmente nas dobras de sua vontade. Eu vos amo como a Fonte, o Meio ativo e vivificante, o Termo e a Saída do Mundo, mesmo natural, e do seu Devir. Centro em que tudo se encontra e que se distende sobre todas as coisas para reconduzi-las a si, eu vos amo pelos prolongamentos do vosso Corpo e da vossa Alma em toda a Criação, por meio da Graça, por meio da Vida, por meio da Matéria. Jesus, doce como um Coração, ardente como uma Força, íntimo como uma Vida – Jesus, em quem posso me fundir, com quem devo dominar e me libertar, eu vos amo como um Mundo, como o Mundo que me seduziu – e sois Vós, agora vejo bem, sois Vós que os homens, meus irmãos, mesmo aqueles que não crêem, sentem e perseguem através da magia do grande Cosmo. Jesus, centro para o qual tudo se move, dignai-vos preparar para nós, para todos, se possível, um lugar entre as mônadas escolhidas e santas que, despegadas uma por uma do caos atual pela vossa solicitude, se agregam lentamente em Vós na unidade da Terra nova. 

Assim o universo inteiro é uma liturgia, a liturgia cósmica que eleva ao trono de Deus toda a criação.
Tudo isto está em total consonância com o Novo Testamento, tomemos algumas partes da Carta aos Hebreus:

3.1 Por isso, irmãos santos, participantes da vocação que vem do céu, fixai bem a mente em Jesus, o apóstolo e sumo sacerdote da fé que professamos. 2 Ele foi fiel a Deus, que o constituiu no cargo, assim como o foi Moisés, em sua casa.
10 1A Lei contém apenas a sombra dos bens futuros, não a expressão exata da realidade. Por isso, com os seus sacrifícios sempre iguais e continuamente repetidos cada ano, ela é totalmente incapaz de levar à perfeição aqueles que se aproximam para oferecê-los… 5 Por essa razão, ao entrar no mundo, Cristo declara: “Não quiseste vítima nem oferenda, nem holocausto, mas formaste um corpo para mim. 6 Não foram do teu agrado holocaustos nem sacrifícios pelo pecado. 7 Então eu disse: Eis que eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade, como no livro está escrito a meu respeito”. 8 Na frase inicial, ele disse: “Não quiseste, nem foram do teu agrado, vítimas e oferendas, holocaustos e sacrifícios pelo pecado” – coisas oferecidas segundo a Lei. 9 E então declarou: “Eis que eu vim para fazer a tua vontade”. Com isso, ele suprime o primeiro sacrifício, para estabelecer o segundo. 10 É em virtude desta vontade que somos santificados pela oferenda do corpo de Jesus Cristo, realizada uma vez por todas. 11 Todo sacerdote se apresenta diariamente para realizar o culto, oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios, incapazes de remover os pecados. 12 Cristo, ao contrário, depois de ter oferecido um sacrifício único pelos pecados, sentou-se para sempre à direita de Deus. 13 Não lhe resta mais senão esperar até que seus inimigos sejam postos como apoio sob os seus pés. 14 De fato, com esta única oblação, levou à perfeição definitiva os que são por ele santificados. 15 Também o Espírito Santo nos atesta isso; de fato, depois de ter dito: 16 “Eis a aliança que farei com eles, depois daqueles dias”, o Senhor acrescenta: “Pondo as minhas leis nos seus corações e inscrevendo-as na sua mente, 17 não me lembrarei mais dos seus pecados, nem das suas iniqüidades”. 18 Onde, pois, existe o perdão, já não se faz oferenda pelo pecado.
12. 1 Portanto, com tamanha nuvem de testemunhas em torno de nós, deixemos de lado tudo o que nos atrapalha e o pecado que nos envolve. Corramos com perseverança na competição que nos é proposta, 2 com os olhos fixos em Jesus, que vai à frente da nossa fé e a leva à perfeição. Em vista da alegria que o esperava, suportou a cruz, não se importando com a infâmia, e assentou-se à direita do trono de Deus

É deste modo que pouco a pouco a Igreja foi tomando consciência do mistério eucarístico. No primeiro milênio da era cristã não sabemos e nem se tem indicio da existência do tabernáculo nas Igrejas antigas. O altar tinha um valor excepcional, para algumas Igrejas era ele considerado e venerado como sendo o próprio Cristo, moldados como tenda sagrada. Foi somente no segundo milênio, sobretudo com a influência da conversão dos francos que se começou este caráter particular da devoção ao Santíssimo Sacramento. Começava paulatinamente uma teologia da presença eucarística na hóstia santa, isto levava a uma busca de valorizar então o espaço que continha as reservas eucarísticas, daí surge a necessidade de criar um espaço que pudesse ao mesmo tempo abrigar e proteger por maior tempo a presença do Senhor. Surge então o tabernáculo como tenda sagrada, com o valor da Schekhina dos judeus, lugar da presença do Senhor vivo. Tudo isto era fruto de um grande empenho teológico dolorosamente alcançados, em que se destaca nitidamente a presença permanente de Cristo na hóstia transubstanciada.
Houve muitas polêmicas neste período inicial da adoração do Santíssimo Sacramento, o próprio Lutero, no período da Reforma, entrará em grande polêmica com esta tradição do segundo milênio, negando definitivamente o valor e sentido da transubstanciação (a transformação do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo), a adoração do Senhor através do Sacramento, o culto eucarístico com custódia e procissão, tudo isso seriam equívocos medievais que devem ser abandonados de uma vez por todas. 
Esta tendência chegou vivamente em nossos dias, às vezes ouvimos pessoas próximas a nós, até mesmos sacerdotes que questionam o valor da adoração, esses alegam que os dons eucarísticos seriam para comer e não para se olharem. Aqui surge uma certa apatia espiritual em relação à presença de Cristo no Santíssimo Sacramento e coloca em perigo a própria fé da Igreja no valor imutável da presença do Senhor na Santa Eucaristia.
Mas se olharmos de perto o desenvolvimento dogmático, teológico, litúrgico e ecumênico, veremos que a raiz de uma tal compreensão da Igreja se funda nos textos do Novo Testamento. O próprio Paulo expõe de forma decisiva a transformação do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo como um fato de ser o ressuscitado, ele próprio, que está aqui, oferecendo-se a nós como comida e bebida. Este realismo eucarístico podemos encontrar com maior ênfase em Jo 6 onde se realça com maior gravidade a real presença de Cristo na Eucaristia, algo que escandalizou de forma profunda muitos dos discípulos de Jesus, que ficaram indignados com o discurso do Pão da Vida.
Mas o mérito em nossos dias de uma verdadeira e própria virada na concepção da Eucaristia como presença atuante e adorante no sacrário, devemos ao grande Cardeal, o padre francês Henri de Lubac. O padre De Lubac apresentou uma compreensão profundamente nova do sentido de eucaristia. Para ele, e os seus estudos ainda hoje é referencia insuperável, a Eucaristia é a nossa própria transubstanciação, a fim de que nos tornemos em Cristo “um só corpo e um só espírito” (cf. 1Cor 6, 17).
O padre De Lubac percebe que é válido ainda hoje o adágio da Igreja antiga: “Lex orandi instituit Lex credendi” (A lei da oração constitui a lei do crer), em palavras simples, a Igreja crê naquilo que ela reza e como ela reza. Neste sentido, o padre De Lubac percebe que quase todas as orações eucarísticas antigas trazem sempre o sentido de uma dinâmica ao seu interno que pede que tanto o pão quanto o vinho transformados sejam a causa de nossa real transformação no Corpo de Cristo, que é a Igreja. Esta intuição permitiu ao padre De Lubac distinguir e aprofundar a própria noção de eucaristia e de Igreja. Para a eucaristia, a compreensão da Igreja antiga era mais mística e espiritual, o termo místico , que naquela época não possui o mesmo significado que hoje lhe atribuímos, fazia ver a Eucaristia como um dom autêntico de Deus, capaz de nos colocar em relação profunda com Deus, por isso a Eucaristia era simplesmente chamada de «corpus mysticum», enquanto que para a Igreja se atribuía um sentido mais realístico, sendo ela designada de «corpus verum» – «corpo real». Esta clareza de termos e conceitos do primeiro milênio tornava possível perceber o claro sentido e a função exata da Eucaristia, que era a de produzir em nós a nossa transformação, a transformação de nossa humanidade no corpo de Cristo. Por conseguinte, as palavras corpus mysticum eram a expressão do corpo sacramental, da presença física de Cristo no sacramento. É por isso que segundo os Padres, ele (o sacramento) nos é dado a fim de nós próprios nos tornarmos corpus verum, o corpo vivo de Cristo. No período medieval houve uma inversão de significado. De agora em diante o sacramento da Eucaristia passa a ser designado como sendo o corpus verum (corpo vivo), e a Igreja assume a conotação de corpus mysticum (corpo místico); então a palavra «místico» deixou de ter o significado de sacramenta, passando a designar «místico», ou seja, misterioso.
É justamente aqui que nasce a raiz do grande problema eucarístico, pois com essa modificação lingüística ocorreu também uma viragem espiritual que acabou ocasionando um prejuízo da compreensão dinâmica da Eucaristia, a favor de uma idéia estática e simplista da presença viva.
Isto se agravou gerando uma substancial perda do caráter mais público e coletivo da adoração eucarística, diminuindo de forma acelerada a dinâmica escatológica da fé eucarística. Ao que parece, já não se tomava em linha de conta que o sacramento em si contenha uma dinâmica, que tem em vista a transformação da Humanidade e do Mundo em novos Céus e uma nova Terra, em unidade com o corpo ressuscitado de Cristo. Apesar de não ter caído completamente em esquecimento, faltava a consciência, outrora existente, de que a Eucaristia não visa em primeiro lugar o indivíduo, mas que o individualismo eucarístico visa simultaneamente a unificação, a superação das barreiras existentes entre Deus e Homem, entre tu e eu no conjunto novo que somos nós na comunidade dos Santos, pois com a Eucaristia começa a realidade escatológica do Deus que “será tudo em todos”, derrubando o muro de separação, toda inimizade e criando assim a plenitude do Corpo Eucarístico de Cristo: a Igreja, reunida dos confins de toda terra para formar o único rebanho do Senhor. Isto só pode se realizar porque Cristo se ofereceu como dom eucarístico, possibilitando assim o nascimento deste novo corpo através da doação do próprio Corpo, “pois quem come a minha carne e bebe o meu sangue viverá em mim e eu nele”; só o corpo vivo do sacramento consegue construir o corpo vivo da nova cidade de Deus.
Novamente podemos voltar com segurança ao nosso tema, a presença sempre viva e atuante de Cristo na Eucaristia, pois na Igreja Antiga, sempre existiu a consciência de que o pão, uma vez transformado, permaneceria transformado. Por isso, ele era venerado e conservava-se para os doentes, como ainda hoje acontece nas igrejas do Oriente. Mas agora, esta consciência é alargada: o dom é transformado. Definitivamente, o Senhor atraiu esse bocado de matéria, ela já não é nenhum dom material, pois Ele é o presente, o inseparável, o ressuscitado: com carne e sangue, com corpo e alma, com divindade e humanidade. Cristo encontra-se todo aqui. A presença de Cristo só pode ser uma presença total. Comungar a Eucaristia é participar da vida do próprio Cristo, isto é, aquilo que chamamos de total incorporação de uma pessoa em outra. Cristo vivo oferece-se a mim, entra em mim e convida-me para entrar nele, de modo que: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (GI 2, 20). E só assim que a comunhão se toma um ato verdadeiramente humano, transformador e que eleva o homem.
Portanto, onde existe tal compreensão no fundo do coração, do raciocínio e dos sentidos, a conseqüência é inevitável: é necessário proporcionar a essa presença o espaço que lhe é devido. E é assim que, pouco a pouco, se constitui a forma do tabernáculo, que toma cada vez mais e sempre com mais evidência, o lugar que outrora pertencia à «Arca da Aliança» no templo de Israel. É no tabernáculo que, no fundo se concretiza aquilo que outrora representou a Arca da Aliança. Ele é o lugar do «Santo dos Santos». Ele é a tenda de Deus, o trono que se encontra no meio de nós mediante a sua presença (Schekhina).
Por isso ninguém pode ficar por ai dizendo que a Eucaristia é só para tomar e não para se olhar, pois ela não é «simplesmente pão». Tomá-la é, em si mesmo, um acontecimento espiritual, inteiramente humano. «Tomá-lo» significa: adorá-lo. «Tomá-lo» significa: deixá-lo entrar em mim, a fim de a minha pessoa ser transformada, a fim de que nele nos tornemos «um único» abrindo-nos para o grande «nós» (Gl 3, 17).
A partir disso, podemos tranquilamente dizer que a adoração não se encontra em posição oposta à comunhão nem ao lado dela; a comunhão só alcançará a sua profundidade quando sustentada e envolvida pela adoração. A presença eucarística no tabernáculo não opõe nem acrescenta uma outra compreensão de Eucaristia à celebração eucarística; ela significa, no fundo, a sua plena realização. E, portanto, por intermédio dessa presença que há sempre de novo Eucaristia na Igreja. Ela nunca se torna espaço morto, sendo sempre vivificada pela presença do Senhor que promana da celebração eucarística, levando-nos ao mesmo tempo para dentro dela, deixando-nos assim participar sempre da Eucaristia cósmica. Por isso que o Cardeal Ratzinger sempre dizia que:
“Uma Igreja sem presença eucarística é, de um certo modo, morta, ainda que convide para a oração. Mas uma igreja onde esteja acesa a luz eterna em frente do tabernáculo será sempre viva, será sempre mais do que apenas uma construção de pedra: nela, o Senhor está sempre à minha espera, chama-me, quer fazer-me «eucarístico» a mim próprio. Ele prepara-me assim para a Eucaristia, põe-me em andamento rumo ao seu regresso”.
 
II PARTE
ADORAÇÃO AO SANTÍSSIMO SACRAMENTO

Como vimos anteriormente o sentido de “tomar o Corpo do Senhor” possui uma forma dinâmica e profundamente espiritual de transformação de todo nosso ser no ser eucarístico da nova humanidade, que é a Igreja. É justamente desta noção que podemos desenvolver o conceito de adoração.
A Adoração é uma forma de memória sagrada. Memória em sentido bíblico significa atualizar uma experiência de Deus, tornar presente um momento especial, numa dinâmica interior do espírito que se abre, através da graça, à totalidade da vida, algo que os místicos e contemplativos chamam de harmonia interior. Trata-se também da concentração do coração sobre aquele ponto no qual o Amor Eterno entra no tempo e o tempo se abre ao Amor Eterno.
Podemos chamar de um tempo especial, tempo de graça. E este tempo é a adoração, a entrega total de si, a abertura do espírito humano ao horizonte infinito de Deus que se abre a nós como forma de um futuro de paz, de beleza e de serenidade. Algo que a celebração eucarística sozinha não pode portar e nem tem a finalidade de ser. É por isto que a Igreja desde cedo percebeu que a Eucaristia é fonte de uma dupla forma de riqueza espiritual: aquela ativa de transformação da vida, do homem, das coisas, da criação, em ação de graças; e o outro aspecto é aquele da contemplação, onde a Eucaristia é fonte da intimidade mais profunda e rica do Deus presente em nós, que vai formando adoradores em espírito e verdade.
Como vimos acima, foi através de um processo lento que a Igreja descobriu a potencialidade da Adoração Eucarística. O Santíssimo era visto somente como reserva eucarística para os enfermos ou para os ausentes. Pouco a pouco começa a surgir entre os monges uma forma de perpetuar aquele momento da celebração eucarística como forma de estar mais presente na presença de Deus. A missa é uma ação (Actio = forma ativa), enquanto se celebra a missa não é possível um tempo especial, pois ela já é a própria forma especial da presença de Deus, tem seu ritmo, segue sua natureza de ritual, exige uma disciplina de toda a assembléia, requer a tonalidade daquilo que o Concílio Vaticano II chamou de uma “participação ativa, consciente e presente”, pois estamos diante da graça concreta do Deus que se faz dom para nós em Jesus. Isto exige um gênero diverso de participação, trata-se de uma participação reflexiva, disciplinada que nos torna aptos a compreender o aspecto visível do mistério e que na Idade Média se chamava de “obra operada objetivamente por Deus” – (ex opere operato). Mas isto não diz tudo. Diz o que Deus fez por nós homens e para a nossa Salvação. Mas não encerra neste ato todas as potencialidades do dom de Deus aberto a nós através da relação que Deus nos possibilitou em seu Filho Jesus.
Este aspecto objetivo e concreto do mistério requer então uma forma aprofundada de viver no mistério. Algo que a própria Missa não tem finalidade de oferecer, pois na Missa se realiza com gestos requeridos e próprios como sair do banco para receber o pão e o vinho, ingerir a eucaristia, retornar ao banco e depois de cinco minutos deixar a Igreja. Este ato não nos permite compreender o que de fato aconteceu conosco neste momento, sem contar que às vezes somos atordoados pelos tormentos e preocupações diárias. Sabemos, por consciência catequética e doutrinária que algo aconteceu em nós, mas não sabemos o que e como isto se realiza no mais profundo de nós mesmos. O que ocorreu na missa supõe aquilo que a Igreja chama de “idade da razão”, isto é, a capacidade racional de compreensão e assentimento do mistério, mas uma tal razão é frágil para termos uma vida verdadeiramente eucarística. Podemos até chamar este primeiro momento de pressuposto necessário da vida eucarística, que possibilita a atitude de recepção do sacramento, e isto faz um bem muito grande, mas não exaure tudo e nem nos dispensa de viver aquela tensão que Jesus faz com a Samaritana, revelando-nos a sede de Deus que tem sede de nossa sede por Ele, isto é a necessidade de superar a linha do puro ritual e entrar assim na fonte sacramental, fonte originaria do mistério Eucarístico, enquanto dinâmica de um Amor Eterno, trinitário e envolvente aponto de criar em nós as condições necessárias de sermos “os adoradores em espírito e em verdade, que o Pai deseja”.
Esta compreensão é muito importante, pois a adoração feita em espírito cristão é capaz de dilatar o nosso ser para vivermos a medida de Deus nesta terra, capazes de “compreender qual a largura, o cumprimento, a extensão e profundidade de Deus e de seu mistério”. Esta medida de Deus é a medida de Cristo: “Amai-vos como eu vos amei”; “Quem permanece no meu amor dará frutos de eternidade”. Esta graça interior da adoração nos permite a conformação a Cristo, a configuração de ser ao ser de Cristo, a reorientação profunda de tudo aquilo que somos à totalidade do amor que requer integralmente o nosso coração para sermos felizes.

A DUALIDADE DE AÇÃO E CONTEMPLAÇÃO
Na nossa vida de fé, enquanto crentes, temos a necessidade de dinamizar o nosso viver espiritual. Seguimos o fundamento de nossa fé: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós… e nós vimos sua glória, e desta glória recebemos graça sobre graça”. Isto nos revela que a nossa fé não é desencarnada e nem alienada. Ela, para ser cristã, deve ocorrer na vida e, através da vida, na história concreta de cada um de nós. Não é uma fé sem rosto, amorfa e inquietante, isto nos levaria a um profundo vazio e até mesmo a possibilidade de uma idolatria de nosso próprio ser projetado por nós mesmos.
Sem deixar de ser uma realidade do espírito: inteligência, afeto, imaginação, fantasia, memória; a adoração segue sendo a realidade mais profunda da vida humana, porque ela ocorre na carne do Verbo experimentado através de nossa própria existência, expressa pela boca, pelo canto, pelos gestos, pelo ajoelhar-se, pelo inclinar-se e, sobretudo, pelo silenciar eloqüente como fonte do diálogo interno e eterno com Deus. Neste sentido podemos dizer que a ação sacramental tende ao superamento de si mesma. Até porque ao definir-se como ato essencialmente receptivo do amor de Deus na Hóstia Consagrada, ela já contém em si um momento contemplativo que por sua vez tende a desenvolver-se para além do ato celebrativo. Esta consciência deve ser formada, exige docilidade e disponibilidade interior para deixar a mão do Senhor nos guiar pelas sendas de seu amor. É um caminho de paciência que nos tira da pura materialidade do comer e beber para a dimensão mais profunda do nosso espírito e da nossa existência, aberta a intimidade do nosso Deus que é mais íntimo que o nosso próprio íntimo –  “Deus interior intimo meo”. Este é o apelo mais profundo que o Senhor Deus nos faz ao se doar totalmente a nós.
O Salmista ao entender isto exclama com voz agradável: “Como é bom saborear a presença do Senhor, sentir a suavidade de nosso Deus e cantar salmos de louvor ao Deus altíssimo”, pois nesta presença penetrante e envolvente ele se deixa tocar pela beleza da Luz Divina, algo que amplia a nossa existência a partir de dentro. Tudo em nós torna-se luminoso: “Pois em vossa Luz contemplamos a Luz”. O que recebemos com a boca agora se torna palpável pelos lábios – (ad-ore = o que brota dos lábios, o que sai do íntimo). Trata-se do ato mais puro e genuíno que o homem pode oferecer a Deus. Deste modo, a realidade sacramental da presença eucarística sede lugar à experiência de difusão desta luz no mais profundo de nós, algo que somente a adoração pode nos fornecer.
Isto corrige uma idéia que se difundiu muito de um certo automatismo sacramental, totalmente indigna dos cristãos. Deus quer amigos, não empregados. Deus forma homens autênticos, não escravos. A graça gera filhos e não mercenários. Por isso a Igreja, a partir do segundo milênio, sempre reconheceu e recomendou a Adoração, porque ela torna o crente capaz de reconhecimento e gratidão pela ação sacramental, pelo dom recebido, a ponto de tornar-nos também: “hóstias vivas, santas e agradáveis a Deus, o nosso Pai”. Trata-se da tentativa de absorver e digerir pacientemente, pelo dom do Espírito Santo, isto que cada um de nós ingerimos materialmente.
Daqui somos capazes de tirar os verdadeiros frutos da graça eucarística que nos dilata à própria dimensão de uma vida que se faz e se torna eucarística: “Não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim”.
Somente quem pratica uma tal forma de vida contemplativa, poderá receber, com o tempo, o dom sublime do estado de contemplação, o estado da paz interior, da serenidade de vida, da temperança das ações, do equilíbrio humano, da doação de vida oblativa e gratuita. O estado de quem sabe olhar a vida com olhos de Deus. Trata-se da pausa que aprendemos a dar-nos diante da vida frenética que nos assola diariamente.
É por isto que a descoberta do aspecto de Adoração Eucarística recebeu tantos realces por parte dos Papas e de tantas comunidades de vida e Congregações Religiosas, surgiu também a necessidade de eventos eucarísticos, Jornadas Eucarísticas, a formação de uma Missa para um momento especial de Cristo que passeia pelas ruas das cidades, como é o caso do “Corpus et sanguis Christi”. Tudo isto nos mostra que a Adoração Eucarística não é uma simples e periférica devoção na Igreja. Aqui esta a raiz dos Santuários Eucarísticos espalhado por todos os continentes, com a finalidade de ser um lugar aberto constantemente, onde o Santíssimo possa ser conservado em um ambiente agradável, limpo, organizado que propicie a adoração silenciosa e solene, ou viva e alegre, acessível a todos e envolvente pela própria natureza. Este lugar agradável e silencioso pode se tornar um refugio seguro para tantas pessoas necessidades de paz interior, de alegria profunda. A Igreja pede que haja neste lugar a disponibilidade de confissões para que realce o valor das grandes conversões. Quando uma pessoa entra em um ambiente assim ela sente a presença de algo que a envolve, que a enriquece, que a fortalece, pois ao entrar neste ambiente de adoração ela se isola dos rumores e das futilidades que nos circundam sempre, e abre em si mesma as possibilidades de um encontro profundo com Deus através do encontro com a Santíssima Eucaristia, e assim vai também se descobrindo a si mesma:

Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova!
Tarde demais eu te amei!
Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava fora de mim!
Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas.
Estavas comigo, mas eu não estava contigo.
Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem.
Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez.
Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira.
Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti.
Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz…
Oh eterna verdade, verdadeira caridade e querida eternidade! És o meu Deus, por ti suspiro dia e noite
Que eu te conheça, ó conhecedor meu! Que eu também te conheça como sou conhecido! Tu, ó força de minha alma, entra dentro dela, ajusta-a a ti, para a teres e possuíres sem mancha nem ruga. Daí-me pois conhecer mais para Vos conhecer melhor…         
Santo Agostinho

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