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CELEBRAÇÃO DE RAMOS E DA PAIXÃO DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO

CELEBRAÇÃO DE RAMOS E DA PAIXÃO DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO

Is 50,4-7; Fl 2,6-11; Lc 19,28-40

Queridos irmãos e irmãs internautas, hoje a Igreja celebra a paixão de Cristo. Hoje se completa o ápice do amor de Deus para nós. No primeiro momento tivemos a celebração de Ramos, nós aclamamos Cristo como Rei. Já nas profecias antigas, em todo o Antigo Testamento e também através do anjo que aparece à Virgem Maria se faz ressoar o antigo anúncio do Cristo que será grande, será o filho do altíssimo. Ele Sentará no trono de seu pai Davi, receberá o cetro da casa de Jacó (Lc 2). Será reconhecido como Conselheiro admirável, Deus forte, Príncipe da Paz. Tudo isso a Sagrada Escritura já havia anunciado e preparado. Mas não se sabia de que forma seria o reinado de Deus, de que forma seria o Messias enviado por Deus. E a surpresa foi grande, admirável mistério. Deus não queria somente nos instruir, nem muito menos invadir a história. Não queria nos violar e agredir, mas de uma forma única Deus foi preparando um tempo de plenitude, um tempo de amadurecimento.

Assim, chegado a plenitude dos tempos, Ele nos enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à lei. Nascido em conformidade com a nossa carne, com a nossa história. Também a carta ao Hebreus nos sintetiza essa história: “Muitas vezes e de modos diversos Deus falou aos nossos Pais pelos profetas. Agora nos últimos dias, falou-nos pelo Filho que constitui herdeiro de tudo, por quem criou também o mundo” (Hb 1,1-2).

E João completa este quadro quando nos diz que este tempo se abreviou e a presença de Deus se tornou próxima, sua face agora se desvelou, “pois ninguém jamais viu a Deus, mas o Filho único de Deus que está no seio do Pai, foi quem no-lo deu a conhecer”(Jo 1,18). Aqui estava a particularidade do mistério da encarnação, do Filho encarnado. Pois, “o Verbo de Deus se fez carne e acampou entre nós” (Jo 1,14), armou a sua tenda em nosso meio. E assim fez ver a gloria de Deus eterna e imutável. Pois ninguém podia ver a Deus e continuar vivo. Era impossível para o homem.

No mistério de sua carne, de sua humanidade passamos a ter uma nova noção de Deus, inaugurou-se um novo tempo. Assim se desvelou para nós a cortina do mistério. Estamos em Deus e Deus está em nós. Sabemos que “n’Ele vivemos, nos movemos e somos”, que “fomos criados por meio dele, nele e para ele”, à sua imagem, na dinâmica de um dia nos assemelharmos a ele que quis se assemelhar a nós. Mas nós não podíamos alcançar esta forma, porque era inexprimível, algo que coração algum pressentiu, nem mesmo algum olho viu, ou ouvidos ouviram. Mas para nós, os eleitos de Deus, manifestou-se como a glória eterna e amorosa de Deus. Glória que é ao mesmo tempo loucura e escândalo.

Mas eis que por detrás deste grande mistério de amor inaugurado pela encarnação do Filho de Deus se escondia um plano mais elevado e profundo: a Cruz. Na própria encarnação já estava presente e implicitamente o mistério da Cruz. Por isso Jesus pode dizer:

Pois ao entrar no mundo, Cristo disse: ‘não quiseste sacrifício e oblação, mas me preparaste um corpo. Não te agradaram holocausto nem sacrifícios pelo pecado’. Então eu disse: ‘eis-me aqui, ò Deus, que venho com prazer para fazer a tua vontade…Me teceste um corpo, uma humanidade… Em virtude desta vontade somos santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo, uma vez para sempre” (Hb 10, 5-7.10).

Aqui se iniciou o mistério da Cruz de Deus. Alguns padres, como Sto. Agostinho, ao ver o mistério da encarnação e também da Cruz de Deus, vêem que o próprio mundo traz em si mesmo o mistério da Cruz.

Trata-se de um mistério antigo que une o Presépio ao Calvário. A noite santa luminosa dos anjos que cantam Glória a Deus nos céus pela encarnação do Filho, com aquela noite de agonia e de silêncio solitário do Filho que busca paz interior e a presença de seu Abba. Estamos diante do sentido e do conteúdo profundo do mistério do Emanuel. A pobreza de Belém manifesta a total impotência de Deus, a fraqueza daquela criança em Nazaré agora manifesta a fraqueza de Deus. Somente assim Deus podia mostrar que seu amor não era de exclusividade, fechado a um povo, excludente de todo o resto. Nascia dentro da terra santa, mas não parava ai; é universal, abre-se a todos os povos. Abraça a todos os homens, como canta o livro do Apocalipse. É por isso que as primeiras eucaristias cantava que ele é “o cordeiro imolado”, “o cordeiro sem mancha”, pois “Cristo nossa Páscoa foi imolado”. Foi imolado, mas continua de pé. Aqui está a beleza de toda a Páscoa. A junção das hastes da Cruz. A verticalidade do amor de Deus que saindo dos infinitos céus penetra nos abismos profundos da ausência de Deus, e se une ao sentido horizontal que se alarga do Presépio ao Calvário, no sentido horizontal do amor e da entrega de Jesus, no seu drama de obediência e entrega, por nós homens e para nossa salvação. Aqui nasce o drama do Calvário, a agonia daquela noite de terror entre “o deixar o cálice” e o “mas” da vontade de Deus:

«Chegaram a um lugar chamado Getsêmani e Jesus disse aos seus discípulos: ‘Sentai-vos aqui enquanto eu vou rezar’[…] Ele começou a sentir medo e angustia. E disse aos seus discípulos: ‘Minha alma está triste até a morte’[…] Então ele se adiantou um pouco, caiu por terra e pedia que, se fosse possível, passasse dele aquela hora. Ele dizia: ‘Abba, Pai, tudo te é possível: afasta de mim este cálice, mas não faca o que eu quero, senão aquilo que tu queres’» (Mc14,32-36).  

Um “mas” que o faz enxergar que Deus guia a história, e é por isso que ele confia que à frente do abismo da morte se encontra a fidelidade de Deus que não deixará vazia uma tal entrega e obediência. Estes são os dois pontos que se destacam nas leituras de hoje.

Veja só: grande é este mistério que se potencializa em duas orientações. Mas isto só se revela a partir do mistério da encarnação, que foi bem manifesta na segunda leitura de hoje, o mistério do esvaziamento de Deus:

Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas ele esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens. Encontrado com aspecto humano, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,6-8).

Aqui começou o mistério da Cruz. E no início da quaresma nós meditávamos duas qualidades essenciais de Jesus em relação a este mistério: fidelidade a Deus – que se realizou pela obediência de amor; e misericordioso em relação aos homens. Fidelidade a Deus, pois Jesus veio do Pai, é “Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro. E de outro lado, ele se fez igual a nós em tudo, exceto naquilo que nega o homem ao próprio homem, o pecado. Isto não podia fazer parte da história de Deus, lhe era incompatível, pois negava o homem ao próprio homem, uma vez que o homem não se afirma por meio do egoísmo, da vaidade, da inveja, da violência, da agressão, tudo isso, ao contrário, diminui o homem em sua dignidade. É importante saber isto, pois aqui se dá a grandeza da Cruz de Cristo. Sua igualdade de amor a nós o torna solidário a nós.

Aqui se manifesta até que ponto vai o amor de Deus por nós. Vai ao extremo, vai ao abismo infinito do vazio do nada sem Deus, que nós chamamos de inferno, é o único lugar que Deus não podia reinar e nem habitar. E, no entanto, no mistério da paixão de Cristo, o mistério de sua Cruz, revela-nos algo totalmente novo, pois agora se rompe todas as barreiras possíveis entre nós e Deus, “caiu, como diz são Paulo, o muro da inimizade, a separação entre Deus e os homens, e entre os homens entre si”. E este abismo nós o contemplamos hoje no mistério da morte de Cristo no madeiro da Cruz. Desde cedo a Igreja compreendeu a centralidade deste mistério. A Páscoa de Cristo è a junção profunda de vários momentos: paixão–morte–sepultura–descida aos infernos–ressurreição–envio do Espírito Santo–ascensão ao Céu da nova humanidade e a vinda Gloriosa do Senhor. E João medita este mistério dizendo, que no momento que o soldado romano enfiava a lança no lado de Cristo, o véu do templo se rasgava de cima a baixo, ali se abria plenamente o mistério de Deus para nós. João faz uma interpretação de teor teológico incrível, pois neste momento João anota que o véu do templo se rasgava do alto a baixo. Era a inauguração da nova situação do homem novo, nascida agora da Cruz de Deus, pois os céus se abriram para nunca mais se fechar, Deus mostra em que consiste o seu amor, a beleza de seu amor, o drama de dar-se e entregar-se. Aqui está a profunda verticalidade do amor de Deus, que brota da eternidade e penetra no vazio do nada sem Deus, desce ao abismo, penetra a mansão dos mortos, onde não há mais vozes de louvor. Esta verticalidade manifesta que aquela profunda intimidade do céu, no seio trinitário, supõe a elasticidade de um amor que permite a total distância de um em relação ao outro. Que é uma distância de dor e de amor, de entrega e de doação, de receptividade filial e de obediência dócil a ponto de se doar totalmente até perder a própria intimidade com a fonte de sua vida, o Deus, seu Pai, chão de sua existência. Nenhum de nós podia suportar a dor que Cristo suportou, só que ele suporta tal dor por meio da obediência e da entrega. Na obediência ele se torna dócil ao Pai e assim aceita a vontade do Pai; na entrega ele ama o homem até o fim, até o profundo abismo de amor. Aqui está o laço que nos une a Deus, que nos reconcilia com o céu. Mas aqui está o grande paradoxo. Pois ao amar o homem, ele se distancia de Deus. E na obediência a Deus ele alcança o último dos homens, aproximando-se assim da humanidade pecadora. Isto é paradoxal, não dá para entender só pela razão. Mas apesar de tudo isso podemos contemplar a grande prova de amor que o Pai nos deu ao nos enviar o seu amado Filho: quanto mais ele ama o homem, mais ele penetra na sombra da morte e no abismo profundo do inferno, e assim mais se distância de Deus no laço profundo de obediência a Deus, mantida pela força do Espírito Santo, que é a forca salvífica emanada de uma tal distância e possibilitada pela própria ação do Espírito no íntimo de Deus.

Paulo já havia visto isto, quando nos disse que “ele que não tendo pecado se fez pecado”. Inocente de todo pecado, isento de toda culpa, ele assume sobre si mesmo o drama do pecado, como diz o profeta Isaias no cântico do Servo sofredor: “Carregou sobre si as nossas culpas”, e “pelas suas chagas, nós fomos curados”, a ponto de se fazer pecado, para entrar no íntimo do pecado para assim destruir, na própria raiz, a força do pecado, por isso a total distância de Deus Pai. Era incompatível para Deus, porém, Deus não poupa seu próprio filho, mas o entrega. Tudo isto já estava profetizado, mas não previsto. Tratava-se do amor pedagógico de Deus que conduzia tudo para a Cruz de Cristo (a Cruz do paraíso, a oferta de Abel, o sacrifício de Isaac, a Arca de Noé o sinal de Jonas, a libertação do Egito). Aqui temos tantas figuras prefigurativas do evento da Cruz.

Tudo isto nos abre os olhos ao amor que fundamenta todo amor, amor que desce ao abismo, à distância infinita de Deus no vazio do inferno. E Cristo aceita tal entrega, desce ao abismo, assume o último posto, o último lugar, que nem mesmo Adão pôde assumir, que nem mesmo os maiores criminosos puderam suportar. Mas é daí que no próximo domingo iremos contemplar a luz que vence a morte, que rompe com todas as trevas, que inunda o inferno de esperança, e assim se cumpre a profecia de Oséias 13: “O morte eu serei a sua morte, o inferno eu serei a sua destruição”. Aqui está a nossa esperança que brota deste domingo, ele morreu para nos salvar, para nos tornar homens luminosos, pois ele é a luz da vida, e quem o segue não anda nas trevas, mas tem a luz da vida. Luz que brota da Ressurreição, que nos abre ao horizonte de Deus, que nos invade sem nos agredir, sem nos violentar, mas que nos eleva e aperfeiçoa nossa vida mais íntima. E assim podemos contemplar o inferno que foi iluminado pela graça de Deus. E Paulo na leitura de hoje traduz isto dizendo que foi exaltado em virtude de sua obediência de amor, e por isso se dobrará a ele todo joelho, no céu, na terra, e nos fundos abismos (inferno). Esta leitura é muito profunda, um convite a aprofundar o mistério da Cruz de Cristo. Então em que consiste este amor? Em despojamento. Pois ele se aniquilou, se esvaziou de si mesmo, assumindo a forma de servo, como foi lembrado na leitura de hoje do profeta Isaias, O servo de Javé, servo do Deus vivo, que foi chicoteado, arrancado as barbas, tirado do meio dos homens. E que maltratado não abriu a boca, mas que teve o olhar resoluto, firme, posto nas mãos de Deus. Ele sabia de onde vinha, e sabia para onde ia. Era o homem mais livre deste mundo, sabe seu “donde e seu aonde”; conhece sua origem, e sabe se dirigir para sua própria meta, por isso se orienta e orienta toda sua vida para “a hora” definitiva que é a Cruz. Ele sabe que é sustentado pelo Pai. Mas vive o drama do abandono, do sofrimento, da solidão profunda, da traição do amigo. O abandono de seus amigos o põe numa solidão profunda, mas, como diz São João, ele sabe reconhecer: “Eu não estou sozinho, o Pai está comigo”.

Mas isto não o isenta do drama da luta interior, da agonia profunda do Getsêmani. Terá que medir a força da obediência e da entrega que supõe a total solidão. O evangelho nos lembra hoje, numa nota própria do evangelho de Lucas, que ao subir para Jerusalém ele vê ao lado o Jardins das oliveiras, ali ele visualiza o drama de sua morte. Entra como rei em Jerusalém, aclamado como o enviado por Deus. Mas dela sai como um amaldiçoado, pois ele morre no calvário, lugar fora das muralhas de Jerusalém, lá não pode morrer um maldito. É necessário que seja expulso. Pois ele é um crucificado. Ele se torna o bode expiatório, sobre o qual se põe toda maldição, todo peso do pecado, e assim é banido da cidade santa. Somente assim podemos compreender o mistério da Cruz, o mistério de uma abóbada que encontra seu ápice no amor de Deus por nós.

E deste amor manifestado na morte vemos a abertura do amor sem limites e sem condições. Chegamos ao ápice deste amor que o evangelho nos diz que tudo se consumou quando o filho dando um grande grito suspirou entregando o seu espírito. Para assim romper toda distância na plenitude do Espírito. Pois expirando entregou o seu espírito, sua vida, sua intimidade. Isto é tão profundo, pois expirar é dar o seu último fôlego, sua grande herança: o Espírito de vida do Pai presente nele desde toda eternidade. Se ele não morresse, o Espírito Santo não teria seu espaço, não agiria. É belo tal contemplação. Do seu hálito todos nós recebemos graças sobre graças, expressa por meio da plenitude de vida nova. Assim ele deu um espaço através de si mesmo para que o Espírito pudesse agir na nova humanidade nascida da Cruz. Por isso vivemos na Igreja como era do Espírito Santo, a era do grande amor de Deus, pois “nisto consiste o amor de Deus em ter derramado sobre os nossos corações o seu Espírito”.

Aqui está a grandeza de um tal amor crucificado, que reúne em si “a loucura” e “a fraqueza de Deus”, pois se Cristo não morresse, se ele não experimentasse a dor da morte, se ele não dissesse tudo esta consumado e expirasse de seu íntimo o hálito de amor, então estaríamos perdidos, ainda seriamos pagãos, distantes de Deus. Mas ele obedeceu e na sua obediência ele soprou sobre nós o seu Espírito.

No próximo domingo viveremos em plenitude e na continuidade da morte superada o sinal deste amor por meio da paz que nos será entregue como forma de plenitude e de comunhão. Onde ele então nos saudará com o Shalom, a paz de vida nova, e soprará sobre nós o seu Espírito. Então viveremos a era do Espírito, e para confirmar tal dom ele nos mostrará as próprias chagas, chagas de amor, chagas de fidelidade. São chagas de perseverança.

Somente assim podemos ligar as duas verdades de Deus, a verdade de sua “imutabilidade”, santidade, transcendência, captáveis pela nossa razão; com a grande novidade da Páscoa: Deus “morreu por nós”, a experiência da “morte de Deus”. «Um Deus que morre» só pode ser compreendido por meio da verdade de um Deus que é amor. Por isto de certa forma podemos dizer: Deus fez a experiência da morte.

Podemos nos manter com cautela diante de um tal mistério. Mas somos chamados a vê-lo de dentro. Mas podemos dizer que “algo” ocorreu no ser íntimo de Deus com a experiência da morte de Cristo. E assim sabemos que tudo que fere o homem, fere a Deus, tudo que toca o homem toca também a Deus.

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