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Assunção de Nossa Senhora( ante-sala do Paraíso)

Querido irmão e irmã internautas, hoje celebramos a festa da Assunção da Virgem Maria. Um privilegio mariano, uma alegria popular. Certa vez, Karl Rahner, um dos maiores teólogo da Igreja, havia dito que os dogmas da Igreja não são fim em si mesmo, nem ponto de chegada, mas pontos de partida, “pontos limites”. Uma tal compreensão nos ajuda a compreender melhor e de forma atualizada o valor perene dos dogmas da Igreja. Neste sentido, cada verdade de fé alcança uma profundidade fecunda e dinâmica, mantendo viva a dimensão comunitária e universal do acontecimento cristão.

É com este olhar que queremos nos aproximar da festa de hoje. Para a Igreja, um privilégio não tem a mesma conotação do mundo, dom exclusivo e único, fechado e intransferível. Privilégio quer dizer algo perene, aberto a todos (universal), e solidário com todos, pois atinge a todos de uma forma particular. Por isso, celebrar a assunção da Virgem Maria ao Céu, é o mesmo de se alegrar pelo nosso destino final, último e definitivo: a alegria de que Deus, em seu plano de amor por nós homens e para nossa salvação, não poupou medidas para nos fazer participar plenamente e integralmente do Céu, da vida em Cristo, da vida em plenitude. O que se afirma aqui é muito grande. Profundo mistério, o homem não perece. A morte está vencida, o corpo ganha sentido de eternidade. A vida neste mundo recebe novo sentido e uma nova riqueza. Somos incorporados na vida divina.

Todas essas frases soltas, tem uma conseqüência fantástica para nós. Desde Platão, o mundo da vida e o mundo dos homens fora dividido. Pagamos um preço muito alto. Platão havia cindido o homem e a vida. Um mundo ideal e um mundo real, corpóreo e aparente. A alma do homem era sua parte ideal, autêntica e imperecível. O corpo um cárcere, uma prisão. Na mesma linha, mas sob uma outra perspectiva, Aristóteles havia reduzido o homem a um “zoon logike” – animal racional. Os antigos tinham a tendência de ver o mundo sob o ângulo do dualismo. Seu estremo antropológico era dividir o homem em alma e corpo e daí fazer decorrer todas as conseqüências de bem e mal, de certo e errado, de verdadeiro e falso. Infelizmente, o corpo sempre pagava o maior tributo. Ele sempre era o mais prejudicado em tudo isso: “esqueça seu corpo, salve sua alma”, rezava um ditado antigo. Em nome de um tal dualismo, chegou-se aos extremos de se judiar do corpo, maltratá-lo. O corpo não era algo essencial ao homem, mas um acidente, uma parte negativa e limitadora. Tudo o que estava ligado ao corporal: o mundo sensorial, as fantasias, a imaginação, as emoções, pouco valiam. Era a vitória do platonismo. Mas o desequilíbrio estava se solidificando. Até que surge Jesus. Deus-homem, homem-Deus.

Em Jesus o homem é iluminado novamente. Sua luz nos restitui a verdade esquecida. O homem é um todo. O corpo sou eu. Não uma simples parte de mim. Uma coisa agregada a mim. Mas sacramento de mim mesmo. 

Desse modo, podemos ler o sentido da festa de hoje. Assunção (assumptio) – significa assumir. A assunção da Virgem Santa deve ser lida então na perspectiva da Encarnação. Ao encarnar-se, Deus, na humanidade de Jesus, nos assumiu por completo:

“O mistério da encarnação é expressão do fenômeno originário, isto é, a auto- doação, o tornar-se, a kénosis (descida à nossa carne) e ghénesis (criação de nossa natureza) de Deus mesmo, mediante a qual ele sem cessar de ser aquilo que é, mas em força de sua livre liberdade primigenia (amor) torna-se aquilo que nasceu criativamente dele: O Logos de Deus torna-se homem, faz do outro sua própria realidade, pois, Deus pode tornar qualquer coisa, o imutável em si mesmo, pode ser mutável ele mesmo em um outro. Esta possibilidade não pode ser pensada como sinal de uma necessidade de Deus, mas como grandeza (l’auteza) de sua perfeição, que seria menor se ao acréscimo de sua infinitude pudesse se tornar menos do que Ele permanentemente é”. [1]

Que beleza! Que maravilha! “O Logos de Deus torna-se homem, faz do outro sua própria realidade”. Nada mais justo do que se alegrar com a Virgem Maria, que nos antecipa a festa do Céu, abrindo-nos ao infinito mistério de Deus que se aproximou de nós. Pela encarnação, ele nos salvou, pela assunção ele nos envolveu dentro de si. O primeiro passo, fez Deus mergulhar na história, no tempo e no espaço. Deus se humanou. Deus aceitou viver a nossa vida, com tudo que isso implica. A carta aos Hebreus vai afirmar: “Foi igual a nós em tudo, exceto naquilo que nega o homem ao próprio homem, o pecado”. Lucas nos lembra sua normalidade: “Crescia e se desenvolvia em estatura, sabedoria e graça diante de Deus e dos homens”. Porque viveu como homem plenamente, pode nos redimir-salvar totalmente. Os antigos sabiam bem disso. Se Jesus não nos tivesse assumido, também não teria nos redimido, como diziam os Padres da Igreja: “o que não é assumido, não é redimido”. O resultado foi fabuloso. A “carne” (sarx), símbolo da vida, da história, do corpo, entra no nosso artigo de fé. Faz-se uma nova história do gênero humano. Abre-se uma nova e definitiva esperança. Tudo ganha sentido no amor. Tudo o que vale a pena nesse mundo, nossa família, nossos amigos, nosso trabalho, nossa beleza, nossa verdade, nossas bondades, nossas relações, nossas lembranças sacramentais, tudo tem salvação. Tudo está sob a luz da vida nova e da ressurreição da carne! Banal é pensar que é banal o que tem valor diante de Deus, em Cristo Jesus. Desvalorizar a carne, a vida, a história, o corpo é uma ofensa a Deus.

Por isso, a Assunção da Santíssima Virgem é um convite renovado da Igreja de olharmos hoje para nós, para nossa vida, para nossa história com novo sentido, com grande esperança. Nada está fora do amor de Deus que tudo restaura. O corpo de Maria no céu e elevado aos Ceus, é conseqüência amorosa do Deus que nos assumiu em si, ao doar-se a nós. Precisamos nos reconciliar com o nosso corpo. Um ditado antigo dizia: “Mens sana in corpore sano” – “mente sadia em um corpo sadio”. Quantas doenças carregamos, quantas feridas. Como nos ferimos em nosso corpo e também em nossa alma através do corpo. Somos chamados a viver alegres em nosso corpo, reconciliados. Vencer os tantos conflitos que muitas vezes nos leva a exageros terríveis, fruto de uma má compreensão do corpo. A não aceitação do corpo, se veste muitas vezes de um repudio, de um abuso, que acaba deixando marcas terríveis e que em certos casos se tornam até traumáticas. Celebrar a gloria de Maria ao céu, é se alegrar de viver no corpo, de forma sadia e alegre, como dizia Sto. Irineu: “A glória de Deus é o homem vivo”. Se vivermos assim, no alegre serviço de Deus, valorizando nosso corpo, como templo da presença, espaço de humanização para o outro, então a nossa carne no dia da ressurreição será semelhante àquela de nossa Mãe Puríssima. Termino com as palavras de Paulo VI: “A pureza que dá ao corpo a dignidade do espírito e que mereceu a Maria trazer em si Cristo Jesus, será aquela que também merecerá para nós de realizar a recomendação de são Paulo: ‘Glorificai a Deus no vosso corpo’”. E assim, na ponte do Corpo de Nosso Senhor, podemos nos alegrar já agora e na hora de nossa morte, por participarmos da mesma glória para sempre nos céus. Pois, como afirmou K. Rahner: “O corpo de Cristo é antecâmara do paraíso”. Depois da morte, já estamos unidos e participamos de seu corpo glorioso. Amém.  

 


[1] K. Rahner, Saggi di Cristologia e Mariologia, 108-111.

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