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Homilias Papa Bento XVI

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI

Basílica Vaticana
Quinta-feira Santa, 9 de Abril de 2009

 

Amados irmãos e irmãs!

No Cenáculo, na noite anterior à sua paixão, o Senhor rezou pelos discípulos reunidos ao seu redor, estendendo ao mesmo tempo o olhar para a comunidade dos discípulos de todos os séculos, para «aqueles que – disse – vão acreditar em Mim por meio da sua palavra» (Jo 17, 20). Na oração pelos discípulos de todos os tempos, Ele viu-nos também a nós e rezou por nós. Ouçamos o que pede para os Doze e para nós aqui reunidos: «Consagra-os na verdade. A tua palavra é a verdade. Assim como Tu Me enviaste ao mundo, também Eu os enviei ao mundo. Eu consagro-Me por eles, para que também eles sejam consagrados na verdade» (Jo 17, 17s). O Senhor pede a nossa santificação, a nossa consagração na verdade. E envia-nos para continuarmos a sua própria missão. Mas há, nesta oração, uma palavra que chama a nossa atenção; parece-nos pouco compreensível. Jesus diz: «Eu consagro-Me por eles». Que significa? Porventura não é Jesus por natureza «o Santo de Deus», como Pedro confessou na hora decisiva de Cafarnaum (cf. Jo 6, 69)? Como pode agora consagrar-Se, isto é, santificar-Se a Si mesmo?

Para o compreendermos, temos sobretudo de esclarecer o significado das palavras «santo» e «santificar/consagrar», na Bíblia. «Santo»: com esta palavra, descreve-se em primeiro lugar a natureza do próprio Deus, o seu modo de ser muito particular, divino, que é próprio só d’Ele. Só Ele é o verdadeiro e autêntico Santo no sentido originário. Qualquer outra santidade deriva d’Ele, é participação no seu modo de ser. Ele é a Luz puríssima, a Verdade e o Bem sem mancha. Por isso, consagrar alguma coisa ou alguém significa dar tal coisa ou pessoa em propriedade a Deus, tirá-la do âmbito daquilo que é nosso e inseri-la na atmosfera d’Ele, de tal modo que deixe de pertencer às nossas coisas para ser totalmente de Deus. Consagração é, pois, tirar do mundo e entregar ao Deus vivo. Aquela coisa ou pessoa deixa de pertencer a nós ou a si mesma, mas é imersa em Deus. Este acto de privar-se duma coisa para a entregar a Deus, chamamo-lo também sacrifício: já não será propriedade minha, mas d’Ele. No Antigo Testamento, a entrega duma pessoa a Deus, isto é, a sua «santificação» coincide com a sua ordenação sacerdotal, e assim se define também em que consiste o sacerdócio: é uma passagem de propriedade, um ser tirado do mundo e dado a Deus. E, deste modo, ficam agora patentes as duas direcções que fazem parte do processo da santificação/consagração: sair dos contextos da vida do mundo e «ser posto à parte» para Deus. Mas por isto mesmo não é uma segregação; antes, ser entregue a Deus significa ser posto a representar os outros. O sacerdote é subtraído aos laços do mundo e dado a Deus, e precisamente assim, a partir de Deus, deve estar disponível para os outros, para todos. Quando Jesus diz «Eu consagro-Me», faz-Se simultaneamente sacerdote e vítima. Por conseguinte, Bultmann tem razão ao traduzir a afirmação «Eu consagro-Me» por «Eu sacrifico-Me». Compreendemos nós agora o que acontece quando Jesus diz «Eu consagro-Me por eles»? Isto é o acto sacerdotal em que Jesus – o Homem Jesus, que forma um só com o Filho de Deus – Se entrega ao Pai por nós. É a expressão do facto que Ele é ao mesmo tempo sacerdote e vítima. Consagro-Me, sacrifico-Me: esta palavra abismal, que nos permite lançar um olhar no íntimo do coração de Jesus Cristo, deveria ser sempre de novo objecto da nossa reflexão. Nela se encerra todo o mistério da nossa redenção. E nela está contida também a origem do sacerdócio da Igreja, do nosso sacerdócio.

Só agora podemos compreender até ao fundo a oração que o Senhor apresentou ao Pai pelos discípulos, por nós. «Consagra-os na verdade»: isto é a integração dos apóstolos no sacerdócio de Jesus Cristo, a instituição do seu sacerdócio novo para a comunidade dos fiéis de todos os tempos. «Consagra-os na verdade»: esta é a verdadeira oração de consagração pelos apóstolos. O Senhor pede que o próprio Deus os atraia a Si, para dentro da sua santidade. Pede que Ele os subtraia a si mesmos e os tome como sua propriedade, a fim de que, a partir d’Ele, possam desempenhar o serviço sacerdotal pelo mundo. Esta oração de Jesus aparece duas vezes, de forma ligeiramente modificada. Temos de ouvir as duas com muita atenção, para começar a entender, pelo menos vagamente, a realidade sublime que aqui se está a verificar: «Consagra-os na verdade» e – Jesus acrescenta – «a tua palavra é a verdade». Por conseguinte os discípulos são atraídos para o íntimo de Deus por meio da sua imersão na palavra de Deus. A palavra de Deus é, por assim dizer, o banho que os purifica, o poder criador que os transforma no ser de Deus. Sendo assim, como se está a realizar isto na nossa vida? Somos verdadeiramente permeados pela palavra de Deus? É verdade que esta é o alimento de que vivemos, mais de quanto o seja o pão e as coisas deste mundo? Conhecemo-la verdadeiramente? Amamo-la? De tal modo nos ocupamos interiormente desta palavra, que a mesma dá realmente um timbre à nossa vida e forma o nosso pensamento? Ou não sucede antes que o nosso pensamento se deixa modelar incessantemente por tudo o que se diz e faz? Porventura não são tantas vezes as opiniões predominantes os critérios pelos quais nos regulamos? No fim de contas, não ficamos porventura na superficialidade de tudo o que, habitualmente, se impõe ao homem de hoje? Deixamo-nos verdadeiramente purificar no nosso íntimo pela palavra de Deus? Nietzsche desdenhou a humildade e a obediência como sendo virtudes servis, pelas quais os homens teriam sido reprimidos. No seu lugar, colocou a ufania e a liberdade absoluta do homem. Ora bem, existem caricaturas duma humildade falsa e duma submissão errada, que não queremos imitar. Mas há também a soberba destrutiva e a presunção, que desagregam qualquer comunidade e acabam na violência. Sabemos nós aprender de Cristo a recta humildade, que corresponde à verdade do nosso ser, e aquela obediência que se submete à verdade, à vontade de Deus? «Consagra-os na verdade. A tua palavra é a verdade»: esta palavra da integração no sacerdócio ilumina a nossa vida e chama-nos a tonarmo-nos sem cessar discípulos daquela verdade que se manifesta na palavra de Deus.

Na interpretação desta frase, podemos dar ainda mais um passo. Não disse Cristo de Si mesmo: «Eu sou a verdade» (cf. Jo 14, 6)? E não é porventura Ele a Palavra viva  de Deus, à qual todas e cada uma das outras palavras fazem referência? Assim, consagra-os na verdade quer dizer, fundamentalmente: torna-os um só comigo, Cristo. Une-os a Mim. Atrai-os para dentro de Mim. E de facto, em última análise, há apenas um único sacerdote da Nova Aliança: o próprio Jesus Cristo. E, por conseguinte, o sacerdócio dos discípulos só pode ser participação no sacerdócio de Jesus. Portanto o nosso ser sacerdotes nada mais é que um novo e radical modo de unificação com Cristo. Esta foi-nos substancialmente concedida para sempre no Sacramento. Mas este novo timbre do ser pode tornar-se para nós um juízo de condenação, se a nossa vida não se desenvolve entrando na verdade do Sacramento. A tal propósito, as promessas que hoje renovamos dizem que a nossa vontade assim se deve orientar: «Domino Iesu arctius coniungi et conformari, vobismetipsis abrenuntiantes». Unir-se a Cristo supõe a renúncia. Comporta não querermos impor a nossa estrada e a nossa vontade; não desejarmos tornar-nos isto ou aquilo, mas abandonarmo-nos a Ele em todo o lado e modo como Ele quiser servir-Se de nós. «Vivo, e contudo já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim», disse São Paulo a tal propósito (cf. Gal 2, 20). No «sim» da Ordenação Sacerdotal, fizemos esta renúncia fundamental a querer ser autónomos, à «auto-realização». Mas é preciso dia após dia cumprir este grande «sim» nos múltiplos «sins» e nas pequenas renúncias. Entretanto este «sim» dos pequenos passos, que juntos constituem o grande «sim», só poderá realizar-se sem amargura nem autocomiseração, se Cristo for verdadeiramente o centro da nossa vida; se cultivarmos uma verdadeira familiaridade com Ele. De facto, então experimentaremos no meio das renúncias, que num primeiro momento podem causar sofrimento, a alegria crescente da amizade com Ele, todos os pequenos e às vezes grandes sinais do seu amor, que nos dá continuamente. «Aquele que se perde a si mesmo, encontra-se». Se ousamos perder-nos a nós mesmos pelo Senhor, experimentaremos como é verdadeira a sua palavra.

Deste processo de sermos imersos na Verdade, em Cristo, faz parte a oração, na qual nos exercitamos na amizade com Ele e também aprendemos a conhecê-Lo: o seu modo de ser, de pensar, de agir. Rezar é fazer estrada em comunhão pessoal com Cristo, expondo diante d’Ele a nossa vida diária, os nossos sucessos e os nossos falimentos, as nossas fadigas e as nossas alegrias: é simplesmente apresentarmo-nos a nós mesmos diante d’Ele. Mas, para que isto não se torne um autocontemplar-se, é importante aprendermos continuamente a orar rezando com a Igreja. Celebrar a Eucaristia quer dizer rezar. Celebramos no justo modo a Eucaristia, se, com o nosso pensamento e com o nosso ser, penetramos nas palavras que a Igreja nos propõe. Nelas está presente a oração de todas as gerações, que nos tomam consigo ao longo do caminho para o Senhor. E, como sacerdotes, somos na celebração eucarística aqueles que, com a sua oração, abrem estrada à oração dos fiéis de hoje. Se estivermos interiormente unidos às palavras da oração, se nos deixarmos guiar e transformar por elas, então também os fiéis encontram o acesso a tais palavras. Então tornamo-nos todos verdadeiramente «um só corpo e uma só alma» com Cristo.

Ser imersos na verdade e, deste modo, na santidade de Deus significa para nós também aceitar o carácter exigente da verdade; contrapor-se, tanto nas coisas grandes como nas pequenas, à mentira, que de modo tão variado está presente no mundo; aceitar a fadiga da verdade, para que a sua alegria mais profunda esteja presente em nós. Quando falamos de ser consagrados na verdade, também não devemos esquecer que, em Jesus Cristo, verdade e amor são uma coisa só. Ser imersos n’Ele significa ser imersos na sua bondade, no amor verdadeiro. O amor verdadeiro não se adquire a baixo preço, pode ser até muito exigente. Opõe resistência ao mal, para levar ao homem o verdadeiro bem. Se nos tornamos um só com Cristo, aprendemos a reconhecê-Lo precisamente nos doentes, nos pobres, nos pequenos deste mundo; tornamo-nos então pessoas que servem, que reconhecem os irmãos e irmãs d’Ele e, nestes, encontramo-Lo a Ele mesmo.

«Consagra-os na verdade» – tal é a primeira parte daquela frase de Jesus. Mas depois acrescenta: «Eu consagro-Me por eles, para que também eles sejam consagrados de verdade», isto é, verdadeiramente (cf. Jo 17, 19). Penso que esta segunda parte encerre um específico significado. Nas religiões do mundo, existem variados modos rituais de «santificação», de consagração duma pessoa humana. Mas todos estes ritos podem permanecer algo de simplesmente formal. Cristo pede para os discípulos a verdadeira santificação, que transforme o seu ser, que os transforme a eles mesmos; que não fique uma forma ritual, mas seja um tornar-se verdadeiramente propriedade do próprio Deus. Poderemos também dizer: Cristo pediu para nós o Sacramento que nos toca na profundeza do nosso ser. Mas pediu também que esta transformação em nós dia após dia se traduza em vida; que no nosso quotidiano e na nossa vida concreta de cada dia sejamos verdadeiramente permeados pela luz de Deus.

Na vigília da minha Ordenação Sacerdotal, há 58 anos, abri a Sagrada Escritura, porque queria ainda receber uma palavra do Senhor para aquele dia e para o meu futuro caminho de sacerdote. O meu olhar deteve-se neste texto: «Consagra-os na verdade. A tua palavra é a verdade». Então dei-me conta: o Senhor está a falar de mim, e está a falar a mim; é isto mesmo que amanhã sucederá comigo. Em última análise, não somos consagrados através de ritos, embora haja necessidade de ritos. O banho, onde o Senhor nos imerge, é Ele próprio – a Verdade em pessoa. Ordenação Sacerdotal significa ser imersos n’Ele, na Verdade. Fico a pertencer de modo novo a Ele e, deste modo, aos outros, «para que venha o seu Reino». Queridos amigos, nesta hora da renovação das promessas, queremos pedir ao Senhor que nos faça ser homens de verdade, homens de amor, homens de Deus. Peçamos-Lhe para nos atrair cada vez mais para dentro d’Ele, a fim de nos tornarmos verdadeiramente sacerdotes da Nova Aliança. Amen.

SANTA MISSA "IN COENA DOMINI"

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI

Basílica de São João de Latrão
Quinta-feira Santa, 9 de Abril de 2009

 

Amados irmãos e irmãs!

Qui, pridie quam pro nostra omniumque salute pateretur, hoc est hodie, accepit panem: assim diremos hoje no Cânone da Santa Missa. «Hoc est hodie»: a liturgia de Quinta-feira Santa insere no texto da oração a palavra «hoje», sublinhando deste modo a dignidade particular deste dia. Foi «hoje» que Ele o fez: deu-Se a Si mesmo para sempre no sacramento do seu Corpo e do seu Sangue. Este «hoje» é antes de mais nada o memorial da Páscoa de então. Mas é mais do que isso. Com o Cânone, entramos neste «hoje». O nosso hoje entra em contacto com o seu hoje. Ele faz isto agora. Com a palavra «hoje», a liturgia da Igreja quer induzir-nos a olhar com grande atenção interior para o mistério deste dia, para as palavras com que o mesmo se exprime. Procuremos, pois, escutar de maneira nova a narração da instituição tal como a Igreja, com base na Escritura e contemplando o próprio Senhor, a formulou.

A primeira coisa que faz impressão é o facto de a narração da instituição não ser uma frase autónoma, mas começar por um pronome relativo: qui pridie.  Este «qui» liga toda a narração à frase anterior da oração: «… se converta para nós no Corpo e Sangue de vosso amado Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo». Deste modo, a narração fica unida à oração anterior, ao Cânone inteiro e torna-se ela mesma oração. Não é de modo algum uma simples narração aqui inserida nem se trata de palavras de autoridade, como um todo à parte, que interromperiam mesmo a oração. É oração. E somente na oração se realiza o acto sacerdotal da consagração, que se torna transformação, transubstanciação dos nossos dons de pão e vinho em Corpo e Sangue de Cristo. Rezando neste momento central, a Igreja está em total acordo com o acontecimento no Cenáculo, porque o agir de Jesus é descrito com as palavras: «gratias agens benedixit – dando graças, abençoou-o». Com esta expressão, a liturgia romana dividiu em duas palavras aquilo que, no hebraico é uma palavra só – berakha –, enquanto em grego já aparece em dois termos: eucharistía e eulogía. O Senhor dá graças. Ao agradecermos, reconhecemos que algo é dádiva que provém de outrem. O Senhor agradece e assim restitui a Deus o pão, «fruto da terra e do trabalho do homem», para de novo o receber d’Ele. Agradecer torna-se abençoar. O que foi entregue nas mãos de Deus, volta d’Ele abençoado e transformado. Por isso, a liturgia romana tem razão quando interpreta a nossa prece neste momento sagrado por meio das palavras: «oferecemos», «suplicamos», «pedimos que aceiteis», «que abençoeis estas ofertas». Tudo isto se encerra na palavra «eucharistia».

Há outra particularidade na narração da instituição referida no Cânone Romano, que queremos meditar nesta hora. A Igreja orante fixa o olhar nas mãos e nos olhos do Senhor. Quer de certo modo observá-Lo, quer perceber o gesto do seu rezar e do seu agir naquela hora singular, encontrar a figura de Jesus por assim dizer também através dos sentidos. «Ele tomou o pão em suas santas e adoráveis mãos…». Olhamos para aquelas mãos com que Ele curou os homens; mãos com que abençoou as crianças; mãos que impôs sobre as pessoas; mãos que foram cravadas na Cruz e que para sempre conservarão os estigmas como sinais do seu amor pronto a morrer. Agora somos nós encarregados de fazer o que Ele fez: tomar nas mãos o pão para que, através da oração eucarística, seja transformado. Na Ordenação Sacerdotal, as nossas mãos foram ungidas, para que se tornassem mãos de bênção. Nesta hora, rezemos ao Senhor para que as nossas mãos sirvam cada vez mais para levar a salvação, levar a bênção, tornar presente a sua bondade.

Depois o Cânone toma, da introdução à Oração Sacerdotal de Jesus (cf. Jo 17, 1), as palavras: «Levantando os olhos ao céu, para Vós, Deus, seu Pai todo-poderoso…». O Senhor ensina-nos a levantar os olhos e sobretudo o coração: a levantar o olhar, afastando-o das coisas do mundo; a orientar-nos na oração para Deus e assim nos erguermos. Num hino da Liturgia das Horas, pedimos ao Senhor que guarde os nossos olhos, para que não acolham nem deixem entrar em nós «vanitates» – as vaidades, as nulidades, aquilo que não passa de ilusão. Pedimos que, através dos olhos, não entre em nós o mal, falsificando e manchando assim o nosso ser. Mas queremos rezar principalmente para ter olhos que vejam tudo o que é verdadeiro, esplendoroso e bom; a fim de nos tornarmos capazes de ver a presença de Deus no mundo. Pedimos para vermos o mundo com olhos de amor, com os olhos de Jesus, reconhecendo assim os irmãos e irmãs que precisam de nós, que estão à espera da nossa palavra e da nossa acção.

Depois de o ter abençoado, o Senhor parte o pão e distribui-o aos discípulos. Partir o pão é o gesto do pai de família que se preocupa dos seus e lhes dá aquilo de que têm necessidade para a vida. Mas é também o gesto da hospitalidade com que o estrangeiro, o hóspede é acolhido na família sendo-lhe concedido tomar parte na sua vida. Partir-partilhar é unir. Através da partilha, cria-se comunhão. No pão repartido, o Senhor distribui-Se a Si próprio. O gesto de partir alude misteriosamente também à sua morte, ao amor até à morte. Ele distribui-Se a Si mesmo, verdadeiro «pão para a vida do mundo» (cf. Jo 6, 51). O alimento de que o homem, no mais fundo de si mesmo, tem necessidade é a comunhão com o próprio Deus. Dando graças e abençoando, Jesus transforma o pão: já não dá pão terreno, mas a comunhão consigo mesmo. Esta transformação, porém, quer ser o início da transformação do mundo, para que se torne um mundo de ressurreição, um mundo de Deus. Sim, trata-se de transformação: do homem novo e do mundo novo que têm início no pão consagrado, transformado, transubstanciado.

Dissemos que partir o pão é um gesto de comunhão, é unir através do partilhar. Deste modo, no próprio gesto já se alude à natureza íntima da Eucaristia: esta é agape, é amor que se tornou corpóreo. Na palavra «agape», compenetram-se os significados de Eucaristia e amor. No gesto de Jesus que parte o pão, o amor que se participa alcançou a sua radicalidade extrema: Jesus deixa-Se fazer em pedaços como pão vivo. No pão distribuído, reconhecemos o mistério do grão de trigo que morre e assim dá fruto. Reconhecemos a nova multiplicação dos pães, que deriva da morte do grão de trigo e continuará até ao fim do mundo. Ao mesmo tempo vemos que a Eucaristia não pode jamais ser apenas uma acção litúrgica; só está completa, quando a agape litúrgica se torna amor no dia a dia. No culto cristão, as duas coisas tornam-se uma só: ser cumulados de graça pelo Senhor no acto cultual e o culto do amor para com o próximo. Nesta hora, peçamos ao Senhor a graça de aprender a viver cada vez melhor o mistério da Eucaristia de tal modo que assim tenha início a transformação do mundo.

Depois do pão, Jesus toma o cálice do vinho. O Cânone Romano qualifica o cálice que o Senhor dá aos discípulos como «praeclarus calix» (como cálice sagrado), aludindo assim ao Salmo 23/22, o Salmo que fala de Deus como Pastor poderoso e bom. Lê-se nele: «Diante de mim, preparastes uma mesa, sob o olhar dos meus inimigos… o meu cálice transborda» – calix praeclarus. O Cânone Romano interpreta esta expressão do Salmo como uma profecia, que se realiza na Eucaristia: Sim, o Senhor prepara-nos a mesa no meio das ameaças deste mundo e dá-nos o cálice sagrado – o cálice da grande alegria, da verdadeira festa, pela qual todos anelamos – o cálice cheio do vinho do seu amor. O cálice significa as bodas: agora chegou a «hora», a que de forma misteriosa tinham aludido as bodas de Caná. Sim, a Eucaristia é mais do que um banquete, é uma festa de núpcias. E estas núpcias fundam-se na autodoacção de Deus até à morte. Nas palavras da Última Ceia de Jesus e no Cânone da Igreja, o mistério solene das núpcias esconde-se sob a expressão «novum Testamentum». Este cálice é o novo Testamento, «a nova Aliança no meu Sangue» – assim a frase de Jesus sobre o cálice é referida por Paulo, na segunda leitura de hoje (1 Cor 11, 25). O Cânone Romano acrescenta «da nova e eterna Aliança», para exprimir a indissolubilidade do laço nupcial de Deus com a humanidade. O motivo pelo qual as antigas traduções da Bíblia não falam de Aliança, mas de Testamento, deve-se ao facto de não serem dois contraentes de nível igual que se encontram, mas entra em acção a distância infinita entre Deus e o homem. Aquilo que designamos por nova e antiga Aliança não é um acto acordado entre duas partes iguais, mas dom meramente de Deus que nos deixa em herança o seu amor, nos deixa a Si mesmo. E com certeza Ele, superando toda a distância através deste dom do seu amor, torna-nos depois verdadeiramente seus «parceiros» e realiza-se o mistério nupcial do amor.

Para se poder compreender em profundidade o que ali sucede, devemos escutar ainda mais atentamente as palavras da Bíblia e o seu significado originário. Os estudiosos dizem-nos que, nos tempos remotos de que falam as histórias dos Patriarcas de Israel, «ratificar uma aliança» significa «entrar com outros numa ligação assente sobre o sangue, ou seja, acolher o outro na própria federação e assim entrar numa comunhão de direitos um com o outro». Deste modo, cria-se uma consanguinidade real, embora não material. Os parceiros tornam-se de algum modo «irmãos com a mesma carne e os mesmos ossos». A aliança realiza um todo que significa paz (cf. ThWNT, II, 105-137). Será possível agora fazermos pelo menos uma ideia do que sucedeu na hora da Última Ceia e que, desde então, se renova sempre que celebramos a Eucaristia? Deus, o Deus vivo estabelece connosco uma comunhão de paz; mais, Ele cria uma «consanguinidade» entre Ele e nós. Através da encarnação de Jesus, através do seu sangue derramado, fomos atraídos para dentro duma consanguinidade muito real com Jesus e, consequentemente, com o próprio Deus. O sangue de Jesus é o seu amor, no qual a vida divina e a humana se tornaram uma só. Peçamos ao Senhor para compreendermos cada vez mais a grandeza deste mistério, a fim de que o mesmo desenvolva de tal modo a sua força transformadora no nosso íntimo que nos tornemos verdadeiramente consanguíneos de Jesus, permeados pela sua paz e desta maneira também em comunhão uns com os outros.

Agora, porém, surge ainda uma nova questão. No Cenáculo, Cristo dá aos seus discípulos o seu Corpo e o seu Sangue, isto é, dá-Se a Si mesmo na totalidade da sua pessoa. Mas, como pode fazê-lo? Está ainda fisicamente presente no meio deles, está ali diante deles! Eis a resposta: naquela hora, Jesus realiza aquilo que tinha anteriormente anunciado no discurso do Bom Pastor: «Ninguém me tira a vida, sou Eu que a dou espontaneamente. Tenho o poder de a dar e o de a retomar…» (Jo 10, 18). Ninguém Lhe pode tirar a vida: é Ele que por livre decisão a dá. Naquela hora, antecipa a crucifixão e a ressurreição. O que se há-de realizar por assim dizer fisicamente n’Ele, cumpre-o Ele já de antemão na liberdade do seu amor. Ele dá a sua vida e retoma-a na ressurreição, a fim de poder partilhá-la para sempre.

Senhor, hoje destes-nos a vossa vida, destes-nos a Vós mesmo. Penetrai-nos com o vosso amor. Fazei-nos viver no vosso «hoje». Tornai-nos instrumentos da vossa paz. Amen.

 

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