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Homilias Semana Santa(Vaticano)

SANTA MISSA "IN COENA DOMINI"

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI

Basílica de São João de Latrão
Quinta-feira Santa, 9 de Abril de 2009

 

Amados irmãos e irmãs!

Qui, pridie quam pro nostra omniumque salute pateretur, hoc est hodie, accepit panem: assim diremos hoje no Cânone da Santa Missa. «Hoc est hodie»: a liturgia de Quinta-feira Santa insere no texto da oração a palavra «hoje», sublinhando deste modo a dignidade particular deste dia. Foi «hoje» que Ele o fez: deu-Se a Si mesmo para sempre no sacramento do seu Corpo e do seu Sangue. Este «hoje» é antes de mais nada o memorial da Páscoa de então. Mas é mais do que isso. Com o Cânone, entramos neste «hoje». O nosso hoje entra em contacto com o seu hoje. Ele faz isto agora. Com a palavra «hoje», a liturgia da Igreja quer induzir-nos a olhar com grande atenção interior para o mistério deste dia, para as palavras com que o mesmo se exprime. Procuremos, pois, escutar de maneira nova a narração da instituição tal como a Igreja, com base na Escritura e contemplando o próprio Senhor, a formulou.

A primeira coisa que faz impressão é o facto de a narração da instituição não ser uma frase autónoma, mas começar por um pronome relativo: qui pridie.  Este «qui» liga toda a narração à frase anterior da oração: «… se converta para nós no Corpo e Sangue de vosso amado Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo». Deste modo, a narração fica unida à oração anterior, ao Cânone inteiro e torna-se ela mesma oração. Não é de modo algum uma simples narração aqui inserida nem se trata de palavras de autoridade, como um todo à parte, que interromperiam mesmo a oração. É oração. E somente na oração se realiza o acto sacerdotal da consagração, que se torna transformação, transubstanciação dos nossos dons de pão e vinho em Corpo e Sangue de Cristo. Rezando neste momento central, a Igreja está em total acordo com o acontecimento no Cenáculo, porque o agir de Jesus é descrito com as palavras: «gratias agens benedixit – dando graças, abençoou-o». Com esta expressão, a liturgia romana dividiu em duas palavras aquilo que, no hebraico é uma palavra só – berakha –, enquanto em grego já aparece em dois termos: eucharistía e eulogía. O Senhor dá graças. Ao agradecermos, reconhecemos que algo é dádiva que provém de outrem. O Senhor agradece e assim restitui a Deus o pão, «fruto da terra e do trabalho do homem», para de novo o receber d’Ele. Agradecer torna-se abençoar. O que foi entregue nas mãos de Deus, volta d’Ele abençoado e transformado. Por isso, a liturgia romana tem razão quando interpreta a nossa prece neste momento sagrado por meio das palavras: «oferecemos», «suplicamos», «pedimos que aceiteis», «que abençoeis estas ofertas». Tudo isto se encerra na palavra «eucharistia».

Há outra particularidade na narração da instituição referida no Cânone Romano, que queremos meditar nesta hora. A Igreja orante fixa o olhar nas mãos e nos olhos do Senhor. Quer de certo modo observá-Lo, quer perceber o gesto do seu rezar e do seu agir naquela hora singular, encontrar a figura de Jesus por assim dizer também através dos sentidos. «Ele tomou o pão em suas santas e adoráveis mãos…». Olhamos para aquelas mãos com que Ele curou os homens; mãos com que abençoou as crianças; mãos que impôs sobre as pessoas; mãos que foram cravadas na Cruz e que para sempre conservarão os estigmas como sinais do seu amor pronto a morrer. Agora somos nós encarregados de fazer o que Ele fez: tomar nas mãos o pão para que, através da oração eucarística, seja transformado. Na Ordenação Sacerdotal, as nossas mãos foram ungidas, para que se tornassem mãos de bênção. Nesta hora, rezemos ao Senhor para que as nossas mãos sirvam cada vez mais para levar a salvação, levar a bênção, tornar presente a sua bondade.

Depois o Cânone toma, da introdução à Oração Sacerdotal de Jesus (cf. Jo 17, 1), as palavras: «Levantando os olhos ao céu, para Vós, Deus, seu Pai todo-poderoso…». O Senhor ensina-nos a levantar os olhos e sobretudo o coração: a levantar o olhar, afastando-o das coisas do mundo; a orientar-nos na oração para Deus e assim nos erguermos. Num hino da Liturgia das Horas, pedimos ao Senhor que guarde os nossos olhos, para que não acolham nem deixem entrar em nós «vanitates» – as vaidades, as nulidades, aquilo que não passa de ilusão. Pedimos que, através dos olhos, não entre em nós o mal, falsificando e manchando assim o nosso ser. Mas queremos rezar principalmente para ter olhos que vejam tudo o que é verdadeiro, esplendoroso e bom; a fim de nos tornarmos capazes de ver a presença de Deus no mundo. Pedimos para vermos o mundo com olhos de amor, com os olhos de Jesus, reconhecendo assim os irmãos e irmãs que precisam de nós, que estão à espera da nossa palavra e da nossa acção.

Depois de o ter abençoado, o Senhor parte o pão e distribui-o aos discípulos. Partir o pão é o gesto do pai de família que se preocupa dos seus e lhes dá aquilo de que têm necessidade para a vida. Mas é também o gesto da hospitalidade com que o estrangeiro, o hóspede é acolhido na família sendo-lhe concedido tomar parte na sua vida. Partir-partilhar é unir. Através da partilha, cria-se comunhão. No pão repartido, o Senhor distribui-Se a Si próprio. O gesto de partir alude misteriosamente também à sua morte, ao amor até à morte. Ele distribui-Se a Si mesmo, verdadeiro «pão para a vida do mundo» (cf. Jo 6, 51). O alimento de que o homem, no mais fundo de si mesmo, tem necessidade é a comunhão com o próprio Deus. Dando graças e abençoando, Jesus transforma o pão: já não dá pão terreno, mas a comunhão consigo mesmo. Esta transformação, porém, quer ser o início da transformação do mundo, para que se torne um mundo de ressurreição, um mundo de Deus. Sim, trata-se de transformação: do homem novo e do mundo novo que têm início no pão consagrado, transformado, transubstanciado.

Dissemos que partir o pão é um gesto de comunhão, é unir através do partilhar. Deste modo, no próprio gesto já se alude à natureza íntima da Eucaristia: esta é agape, é amor que se tornou corpóreo. Na palavra «agape», compenetram-se os significados de Eucaristia e amor. No gesto de Jesus que parte o pão, o amor que se participa alcançou a sua radicalidade extrema: Jesus deixa-Se fazer em pedaços como pão vivo. No pão distribuído, reconhecemos o mistério do grão de trigo que morre e assim dá fruto. Reconhecemos a nova multiplicação dos pães, que deriva da morte do grão de trigo e continuará até ao fim do mundo. Ao mesmo tempo vemos que a Eucaristia não pode jamais ser apenas uma acção litúrgica; só está completa, quando a agape litúrgica se torna amor no dia a dia. No culto cristão, as duas coisas tornam-se uma só: ser cumulados de graça pelo Senhor no acto cultual e o culto do amor para com o próximo. Nesta hora, peçamos ao Senhor a graça de aprender a viver cada vez melhor o mistério da Eucaristia de tal modo que assim tenha início a transformação do mundo.

Depois do pão, Jesus toma o cálice do vinho. O Cânone Romano qualifica o cálice que o Senhor dá aos discípulos como «praeclarus calix» (como cálice sagrado), aludindo assim ao Salmo 23/22, o Salmo que fala de Deus como Pastor poderoso e bom. Lê-se nele: «Diante de mim, preparastes uma mesa, sob o olhar dos meus inimigos… o meu cálice transborda» – calix praeclarus. O Cânone Romano interpreta esta expressão do Salmo como uma profecia, que se realiza na Eucaristia: Sim, o Senhor prepara-nos a mesa no meio das ameaças deste mundo e dá-nos o cálice sagrado – o cálice da grande alegria, da verdadeira festa, pela qual todos anelamos – o cálice cheio do vinho do seu amor. O cálice significa as bodas: agora chegou a «hora», a que de forma misteriosa tinham aludido as bodas de Caná. Sim, a Eucaristia é mais do que um banquete, é uma festa de núpcias. E estas núpcias fundam-se na autodoacção de Deus até à morte. Nas palavras da Última Ceia de Jesus e no Cânone da Igreja, o mistério solene das núpcias esconde-se sob a expressão «novum Testamentum». Este cálice é o novo Testamento, «a nova Aliança no meu Sangue» – assim a frase de Jesus sobre o cálice é referida por Paulo, na segunda leitura de hoje (1 Cor 11, 25). O Cânone Romano acrescenta «da nova e eterna Aliança», para exprimir a indissolubilidade do laço nupcial de Deus com a humanidade. O motivo pelo qual as antigas traduções da Bíblia não falam de Aliança, mas de Testamento, deve-se ao facto de não serem dois contraentes de nível igual que se encontram, mas entra em acção a distância infinita entre Deus e o homem. Aquilo que designamos por nova e antiga Aliança não é um acto acordado entre duas partes iguais, mas dom meramente de Deus que nos deixa em herança o seu amor, nos deixa a Si mesmo. E com certeza Ele, superando toda a distância através deste dom do seu amor, torna-nos depois verdadeiramente seus «parceiros» e realiza-se o mistério nupcial do amor.

Para se poder compreender em profundidade o que ali sucede, devemos escutar ainda mais atentamente as palavras da Bíblia e o seu significado originário. Os estudiosos dizem-nos que, nos tempos remotos de que falam as histórias dos Patriarcas de Israel, «ratificar uma aliança» significa «entrar com outros numa ligação assente sobre o sangue, ou seja, acolher o outro na própria federação e assim entrar numa comunhão de direitos um com o outro». Deste modo, cria-se uma consanguinidade real, embora não material. Os parceiros tornam-se de algum modo «irmãos com a mesma carne e os mesmos ossos». A aliança realiza um todo que significa paz (cf. ThWNT, II, 105-137). Será possível agora fazermos pelo menos uma ideia do que sucedeu na hora da Última Ceia e que, desde então, se renova sempre que celebramos a Eucaristia? Deus, o Deus vivo estabelece connosco uma comunhão de paz; mais, Ele cria uma «consanguinidade» entre Ele e nós. Através da encarnação de Jesus, através do seu sangue derramado, fomos atraídos para dentro duma consanguinidade muito real com Jesus e, consequentemente, com o próprio Deus. O sangue de Jesus é o seu amor, no qual a vida divina e a humana se tornaram uma só. Peçamos ao Senhor para compreendermos cada vez mais a grandeza deste mistério, a fim de que o mesmo desenvolva de tal modo a sua força transformadora no nosso íntimo que nos tornemos verdadeiramente consanguíneos de Jesus, permeados pela sua paz e desta maneira também em comunhão uns com os outros.

Agora, porém, surge ainda uma nova questão. No Cenáculo, Cristo dá aos seus discípulos o seu Corpo e o seu Sangue, isto é, dá-Se a Si mesmo na totalidade da sua pessoa. Mas, como pode fazê-lo? Está ainda fisicamente presente no meio deles, está ali diante deles! Eis a resposta: naquela hora, Jesus realiza aquilo que tinha anteriormente anunciado no discurso do Bom Pastor: «Ninguém me tira a vida, sou Eu que a dou espontaneamente. Tenho o poder de a dar e o de a retomar…» (Jo 10, 18). Ninguém Lhe pode tirar a vida: é Ele que por livre decisão a dá. Naquela hora, antecipa a crucifixão e a ressurreição. O que se há-de realizar por assim dizer fisicamente n’Ele, cumpre-o Ele já de antemão na liberdade do seu amor. Ele dá a sua vida e retoma-a na ressurreição, a fim de poder partilhá-la para sempre.

Senhor, hoje destes-nos a vossa vida, destes-nos a Vós mesmo. Penetrai-nos com o vosso amor. Fazei-nos viver no vosso «hoje». Tornai-nos instrumentos da vossa paz. Amen.

VIGÍLIA PASCAL NA NOITE SANTA

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI

Basílica de São Pedro
Sábado Santo 11 de Abril de 2009

 

Amados irmãos e irmãs!

Narra São Marcos no seu Evangelho que os discípulos, ao descer do monte da Transfiguração, discutiam entre si o que queria dizer «ressuscitar dos mortos» (cf. Mc 9, 10). Antes, o Senhor tinha-lhes anunciado a sua paixão e a ressurreição três dias depois. Pedro tinha protestado contra o anúncio da morte. Mas agora interrogavam-se acerca do que se poderia entender pelo termo «ressurreição». Porventura não acontece o mesmo também a nós? O Natal, o nascimento do Deus Menino de certo modo é-nos imediatamente compreensível. Podemos amar o Menino, podemos imaginar a noite de Belém, a alegria de Maria, a alegria de São José e dos pastores e o júbilo dos Anjos. Mas, a ressurreição: o que é? Não entra no âmbito das nossas experiências, e assim a mensagem frequentemente acaba, em qualquer medida, incompreendida, algo do passado. A Igreja procura levar-nos à sua compreensão, traduzindo este acontecimento misterioso na linguagem dos símbolos pelos quais nos seja possível de algum modo contemplar este facto impressionante. Na Vigília Pascal, indica-nos o significado deste dia sobretudo através de três símbolos: a luz, a água e o cântico novo do aleluia.

Temos, em primeiro lugar, a luz. A criação por obra de Deus – acabámos de ouvir a sua narração bíblica – começa com as palavras: «Haja luz!» (Gen 1, 3). Onde há luz, nasce a vida, o caos pode transformar-se em cosmos. Na mensagem bíblica, a luz é a imagem mais imediata de Deus: Ele é todo Resplendor, Vida, Verdade, Luz. Na Vigília Pascal, a Igreja lê a narração da criação como profecia. Na ressurreição, verifica-se de modo mais sublime aquilo que este texto descreve como o início de todas as coisas. Deus diz de novo: «Haja luz». A ressurreição de Jesus é uma irrupção de luz. A morte fica superada, o sepulcro escancarado. O próprio Ressuscitado é Luz, a Luz do mundo. Com a ressurreição, o dia de Deus entra nas noites da história. A partir da ressurreição, a luz de Deus difunde-se pelo mundo e pela história. Faz-se dia. Somente esta Luz – Jesus Cristo – é a luz verdadeira, mais verdadeira que o fenómeno físico da luz. Ele é a Luz pura: é o próprio Deus, que faz nascer uma nova criação no meio da antiga, transforma o caos em cosmos.

Procuremos compreender isto um pouco melhor ainda. Porque é que Cristo é Luz? No Antigo Testamento, a Torah era considerada como a luz vinda de Deus para o mundo e para os homens. Aquela separa, na criação, a luz das trevas, isto é, o bem do mal. Aponta ao homem o caminho justo para viver de modo autêntico. Indica-lhe o bem, mostra-lhe a verdade e conduz-lo para o amor, que é o seu conteúdo mais profundo. Aquela é «lâmpada» para os passos, e «luz» no caminho (cf. Sal 119/118, 105). Ora, os cristãos sabiam que, em Cristo está presente a Torah: a Palavra de Deus está presente n’Ele como Pessoa. A Palavra de Deus é a verdadeira Luz de que o homem necessita. Esta Palavra está presente n’Ele, no Filho. O Salmo 19 comparara a Torah ao sol, que, nascendo, manifesta a glória de Deus visivelmente em todo o mundo. Os cristãos compreendem: sim, na ressurreição, o Filho de Deus surgiu como Luz sobre o mundo. Cristo é a grande Luz, da qual provém toda a vida. Ele faz-nos reconhecer a glória de Deus de um extremo ao outro da terra. Indica-nos a estrada. Ele é o dia de Deus que agora, crescendo, se difunde por toda a terra. Agora, vivendo com Ele e por Ele, podemos viver na luz.

Na Vigília Pascal, a Igreja representa o mistério da luz de Cristo no sinal do círio pascal, cuja chama é simultaneamente luz e calor. O simbolismo da luz está ligado com o do fogo: resplendor e calor, resplendor e energia de transformação contida no fogo. Verdade e amor andam juntos. O círio pascal arde e deste modo se consuma: cruz e ressurreição são inseparáveis. Da cruz, da autodoacção do Filho nasce a luz, provém o verdadeiro resplendor sobre o mundo. No círio pascal, todos acendemos as nossas velas, sobretudo as dos neo-baptizados, aos quais, neste sacramento, a luz de Cristo é colocada no fundo do coração. A Igreja Antiga designou o Baptismo como fotismos, como sacramento da iluminação, como uma comunicação de luz e ligou-o inseparavelmente com a ressurreição de Cristo. No Baptismo, Deus diz ao baptizando: «Haja luz». O baptizando é introduzido dentro da luz de Cristo. Cristo divide agora a luz das trevas. N’Ele reconhecemos o que é verdadeiro e o que é falso, o que é o resplendor e o que é a escuridão. Com Ele, surge em nós a luz da verdade e começamos a compreender. Uma vez quando Cristo viu a gente que se congregara para O escutar e esperava d’Ele uma orientação, sentiu compaixão por ela, porque eram como ovelhas sem pastor (cf. Mc 6, 34). No meio das correntes contrastantes do seu tempo, não sabiam a quem dirigir-se. Quanta compaixão deve Ele sentir também do nosso tempo, por causa de todos os grandes discursos por trás dos quais, na realidade, se esconde uma grande desorientação! Para onde devemos ir? Quais são os valores, segundo os quais podemos regular-nos? Os valores segundo os quais podemos educar os jovens, sem lhes dar normas que talvez não subsistam nem exigir coisas que talvez não lhes devam ser impostas? Ele é a Luz. A vela baptismal é o símbolo da iluminação que nos é concedida no Baptismo. Assim, nesta hora, também São Paulo nos fala de modo muito imediato. Na Carta aos Filipenses, diz que, no meio de uma geração má e perversa, os cristãos deveriam brilhar como astros no mundo (cf. Fil 2, 15). Peçamos ao Senhor que a pequena chama da vela, que Ele acendeu em nós, a luz delicada da sua palavra e do seu amor no meio das confusões deste tempo não se apague em nós, mas torne-se cada vez mais forte e mais resplendorosa. Para que sejamos com Ele pessoas do dia, astros para o nosso tempo.

O segundo símbolo da Vigília Pascal – a noite do Baptismo – é a água. Esta aparece, na Sagrada Escritura e consequentemente também na estrutura íntima do sacramento do Baptismo, com dois significados opostos. De um lado, temos o mar que se apresenta como o poder antagonista da vida sobre a terra, como a sua contínua ameaça, à qual, porém, Deus colocou um limite. Por isso o Apocalipse, ao falar do mundo novo de Deus, diz que lá o mar já não existirá (cf. 21, 1). É o elemento da morte. E assim torna-se a representação simbólica da morte de Jesus na cruz: Cristo desceu aos abismos do mar, às águas da morte, como Israel penetrou no Mar Vermelho. Ressuscitado da morte, Ele dá-nos a vida. Isto significa que o Baptismo não é apenas um banho, mas um novo nascimento: com Cristo, como que descemos ao mar da morte para dele subirmos como criaturas novas.

O outro significado com que encontramos a água é como nascente fresca, que dá a vida, ou também como o grande rio donde provém a vida. Segundo o ordenamento primitivo da Igreja, o Baptismo devia ser administrado com água fresca de nascente. Sem água, não há vida. Impressiona a grande importância que têm na Sagrada Escritura os poços. São lugares donde brota a vida. Junto do poço de Jacob, Cristo anuncia à Samaritana o poço novo, a água da vida verdadeira. Manifesta-Se a ela como o novo e definitivo Jacob, que abre à humanidade o poço que esta aguarda: aquela água que dá a vida que jamais se esgota (cf. Jo 4, 5-15). São João narra-nos que um soldado feriu com uma lança o lado de Jesus e que, do lado aberto – do seu coração trespassado –, saiu sangue e água (cf. Jo 19, 34). Nisto, a Igreja Antiga viu um símbolo do Baptismo e da Eucaristia, que brotam do coração trespassado de Jesus. Na morte, Jesus mesmo Se tornou a nascente. Numa visão, o profeta Ezequiel tinha visto o Templo novo, do qual jorra uma nascente que se torna um grande rio que dá a vida (cf. Ez 47, 1-12); para uma Terra que sempre sofria com a seca e a falta de água, esta era uma grande visão de esperança. A cristandade dos primórdios compreendeu: em Cristo, realizou-se esta visão. Ele é o Templo verdadeiro, o Templo vivo de Deus. E é também a nascente de água viva. D’Ele brota o grande rio que, no Baptismo, faz frutificar e renova o mundo; o grande rio de água viva é o seu Evangelho que torna fecunda a terra. Mas Jesus profetizou uma coisa ainda maior; diz Ele: «Do seio daquele que acreditar em Mim, correrão rios de água viva» (Jo 7, 38). No Baptismo, o Senhor faz de nós não só pessoas de luz, mas também nascentes das quais brota água viva. Todos nós conhecemos tais pessoas que nos deixam de algum modo restaurados e renovados; pessoas que são como que uma fonte de água fresca borbotante. Não devemos necessariamente pensar a pessoas grandes como Agostinho, Francisco de Assis, Teresa de Ávila, Madre Teresa de Calcutá e assim por diante, pessoas através das quais verdadeiramente rios de água viva penetraram na história. Graças a Deus, encontramo-las continuamente mesmo no nosso dia a dia: pessoas que são uma nascente. Com certeza, conhecemos também o contrário: pessoas das quais emana um odor parecido com o dum charco com água estagnada ou mesmo envenenada. Peçamos ao Senhor, que nos concedeu a graça do Baptismo, para podermos ser sempre nascentes de água pura, fresca, saltitante da fonte da sua verdade e do seu amor.

O terceiro grande símbolo da Vigília Pascal é de natureza muito particular; envolve o próprio homem. É a entoação do cântico novo: o aleluia. Quando uma pessoa experimenta uma grande alegria, não pode guardá-la para si. Deve manifestá-la, transmiti-la. Mas que sucede quando a pessoa é tocada pela luz da ressurreição, entrando assim em contacto com a própria Vida, com a Verdade e com o Amor? Disto, não pode limitar-se simplesmente a falar; o falar já não basta. Ela tem de cantar. Na Bíblia, a primeira menção do acto de cantar encontra-se depois da travessia do Mar Vermelho. Israel libertou-se da escravidão. Subiu das profundezas ameaçadoras do mar. É como se tivesse renascido. Vive e é livre. A Bíblia descreve a reacção do povo a este grande acontecimento da salvação com a frase: «O povo acreditou no Senhor e em Moisés, seu servo» (Ex 14, 31). Segue-se depois a segunda reacção que nasce, por uma espécie de necessidade interior, da primeira: «Então Moisés e os filhos de Israel cantaram este cântico ao Senhor…». Na Vigília Pascal, ano após ano, nós, cristãos, depois da terceira leitura entoamos este cântico, cantamo-lo como o nosso cântico, porque também nós, pelo poder de Deus, fomos tirados para fora da água e libertos para a vida verdadeira.

Para a história do cântico de Moisés depois da libertação de Israel do Egipto e depois da subida do Mar Vermelho, há um paralelismo surpreendente no Apocalipse de São João. Antes de iniciarem os últimos sete flagelos impostos à terra, aparece ao vidente «uma espécie de mar de cristal misturado com fogo. Sobre o mar de cristal, estavam de pé os vencedores do Monstro, da sua imagem e do número do seu nome. Tinham na mão harpas divinas e cantavam o cântico de Moisés, o servo de Deus, e o cântico do Cordeiro…» (Ap 15, 2s). Com esta imagem, é descrita a situação dos discípulos de Jesus em todos os tempos, a situação da Igreja na história deste mundo. Considerada humanamente, tal situação é contraditória em si mesma. Por um lado, a comunidade encontra-se no Êxodo, no meio do Mar Vermelho. Num mar que, paradoxalmente, é ao mesmo tempo gelo e fogo. E não deve porventura a Igreja caminhar sempre sobre o mar através do fogo e do frio? Humanamente falando, deveria afundar. Mas não, e enquanto caminha ainda no meio deste Mar Vermelho, ela canta – entoa o cântico de louvor dos justos: o cântico de Moisés e do Cordeiro, no qual concordam a Antiga e a Nova Aliança. Enquanto, na realidade deveria afundar, a Igreja entoa o cântico de agradecimento dos redimidos. Está sobre as águas de morte da história e todavia já está ressuscitada. Cantando, ela agarra-se à mão do Senhor, que a sustenta por cima das águas. E sabe que deste modo é guindada fora da força de gravidade da morte e do mal – uma força da qual, sem tal intervenção, não haveria caminho algum de fuga – guindada e atraída para dentro da nova força de gravidade de Deus, da verdade e do amor. De momento, a Igreja e todos nós encontramo-nos ainda entre os dois campos gravitacionais. Mas desde que Jesus ressuscitou, a gravitação do amor é mais forte que a do ódio; a força de gravidade da vida é mais forte que a da morte. Porventura não é esta a situação da Igreja de todos os tempos, a nossa situação? Sempre dá a impressão que ela deva afundar, e todavia já está salva. São Paulo ilustrou esta situação com as palavras: «Somos considerados (…) como agonizantes, embora estejamos com vida» (2 Cor 6, 9). A mão salvadora do Senhor nos sustenta e assim podemos cantar já agora o cântico dos redimidos, o cântico novo dos ressuscitados: Aleluia! Amen.

 

DOMINGO DE PÁSCOA DA RESSURREIÇÃO DO SENHOR

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI

Domingo de Páscoa
12 de Abril de 2009

 

Amados irmãos e irmãs!

«Cristo, o nosso cordeiro pascal, foi imolado» (1 Cor 5, 7): ressoa hoje esta exclamação de São Paulo que ouvimos na segunda leitura, tirada da primeira Carta aos Coríntios. É um texto que remonta apenas a uns vinte anos depois da morte e ressurreição de Jesus e no entanto – como é típico de certas expressões paulinas – já encerra, numa síntese admirável, a plena consciência da novidade cristã. Aqui, o símbolo central da história da salvação – o cordeiro pascal – é identificado em Jesus, chamado precisamente «o nosso cordeiro pascal». A Páscoa hebraica, memorial da libertação da escravidão do Egipto, previa anualmente o rito da imolação do cordeiro, um cordeiro por família, segundo a prescrição de Moisés. Na sua paixão e morte, Jesus revela-Se como o Cordeiro de Deus «imolado» na cruz para tirar os pecados do mundo. Foi morto precisamente na hora em que era costume imolar os cordeiros no Templo de Jerusalém. O sentido deste seu sacrifício tinha-o antecipado Ele mesmo durante a Última Ceia, substituindo-Se – sob os sinais do pão e do vinho – aos alimentos rituais da refeição na Páscoa hebraica. Podemos assim afirmar com verdade que Jesus levou a cumprimento a tradição da antiga Páscoa e transformou-a na sua Páscoa.

A partir deste novo significado da festa pascal, compreende-se também a interpretação dos «ázimos» dada por São Paulo. O Apóstolo refere-se a um antigo costume hebraico, segundo o qual, por ocasião da Páscoa, era preciso eliminar de casa todo e qualquer resto de pão fermentado. Por um lado, isto constituía uma recordação do que tinha acontecido aos seus antepassados no momento da fuga do Egipto: saindo à pressa do país, tinham levado consigo apenas fogaças não fermentadas. Mas, por outro, «os ázimos» eram símbolo de purificação: eliminar o que era velho para dar espaço ao novo. Agora, explica São Paulo, também esta antiga tradição adquire um sentido novo, precisamente a partir do novo «êxodo» que é a passagem de Jesus da morte à vida eterna. E dado que Cristo, como verdadeiro Cordeiro, Se sacrificou a Si mesmo por nós, também nós, seus discípulos – graças a Ele e por meio d’Ele –, podemos e devemos ser «nova massa», «pães ázimos», livres de qualquer resíduo do velho fermento do pecado: nada de malícia ou perversidade no nosso coração.

«Celebremos, pois, a festa (…) com os pães ázimos da pureza e da verdade»: esta exortação de São Paulo, que conclui a breve leitura que há pouco foi proclamada, ressoa ainda mais forte no contexto do Ano Paulino. Amados irmãos e irmãs, acolhamos o convite do Apóstolo; abramos o espírito a Cristo morto e ressuscitado para que nos renove, para que elimine do nosso coração o veneno do pecado e da morte e nele infunda a seiva vital do Espírito Santo: a vida divina e eterna. Na Sequência Pascal, como que respondendo às palavras do Apóstolo, cantámos: «Scimus Christum surrexisse a mortuis vere – sabemos que Cristo ressuscitou verdadeiramente dos mortos». Sim! Isto é precisamente o núcleo fundamental da nossa profissão de fé; é o grito de vitória que hoje nos une a todos. E se Jesus ressuscitou e, por conseguinte, está vivo, quem poderá separar-nos d’Ele? Quem poderá privar-nos do seu amor, que venceu o ódio e derrotou a morte?

O anúncio da Páscoa propaga-se pelo mundo com o cântico jubiloso do Aleluia. Cantemo-lo com os lábios; cantemo-lo sobretudo com o coração e com a vida: com um estilo «ázimo» de vida, isto é, simples, humilde e fecundo de obras boas. «Surrexit Christus spes mea: / precedet vos in Galileam – ressuscitou Cristo, minha esperança / precede-vos na Galileia». O Ressuscitado precede-nos e acompanha-nos pelas estradas do mundo. É Ele a nossa esperança, é Ele a verdadeira paz do mundo. Amen.

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